Cixin Liu - CAP 25-34


 


Cixin Liu, O Problema dos Três Corpos, Capítulos de 25 a 34.



25. A MORTE DE LEI ZHICHENG E YANG WEINING






INVESTIGADOR: Nome?



YE WENJIE: Ye Wenjie.



INVESTIGADOR: Mês e ano de nascimento?



YE: Junho de 1943.



INVESTIGADOR: Profissão?



YE: Professora de astrofísica na Universidade Tsinghua. Aposentada desde 2004.



INVESTIGADOR: Em consideração a seu estado de saúde, a senhora pode pedir um intervalo no interrogatório a qualquer momento.



YE: Obrigada. Estou bem.



INVESTIGADOR: Agora só estamos realizando uma investigação criminal corriqueira e não vamos entrar em questões mais delicadas. Gostaríamos de terminar logo. Esperamos que a senhora coopere.



YE: Eu sei a que o senhor se refere. Sim, vou cooperar.



INVESTIGADOR: Nossa investigação revelou que, quando você trabalhava na Base Costa Vermelha, foi suspeita de assassinato.



YE: Eu realmente matei duas pessoas.



INVESTIGADOR: Quando?



YE: Na tarde do dia 21 de outubro de 1979.



INVESTIGADOR: Nome das vítimas?



YE: Lei Zhicheng, comissário da Base, e Yang Weining, engenheiro da Base e meu marido.



INVESTIGADOR: Explique os motivos para os assassinatos.



YE: Posso… partir do princípio de que o senhor conhece a relevância do contexto?



INVESTIGADOR: Estou a par do básico. Se precisar esclarecer algo, pergunto.



YE: Ótimo. No dia em que a comunicação extraterrestre chegou e eu enviei a resposta, descobri que não fui a única pessoa a receber a mensagem. Lei também recebeu.



***



Lei era um quadro político típico daquela época: possuía um faro extremamente apurado para a política e enxergava tudo pelo viés da ideologia. A maioria da equipe técnica da Base Costa Vermelha não sabia, mas ele tinha um pequeno programa rodando direto no computador principal. Esse programa lia constantemente os buffers de transmissão e recepção e armazenava





os resultados em um arquivo oculto criptografado. Assim, tudo o que a Costa Vermelha transmitisse ou recebesse seria salvo em uma cópia que só ele poderia ver. Foi por essa cópia que ele descobriu a mensagem extraterrestre.



Na tarde do dia em que eu mandei minha mensagem para o sol nascente, e pouco depois de eu descobrir que estava grávida na enfermaria da base, Lei me chamou em sua sala, e vi na tela do terminal dele a mensagem que eu tinha recebido de Trissolaris na noite anterior…



— Faz oito horas desde que você recebeu a primeira mensagem. Em vez de relatar, você deletou a mensagem original e talvez tenha escondido uma cópia. É isso?

Fiquei de cabeça baixa e não respondi.



— Eu sei qual é seu próximo passo: você pretende responder. Se eu não tivesse descoberto a tempo, você teria arruinado a civilização humana! É claro que não estou dizendo que temos medo de uma invasão interestelar. Mesmo se imaginássemos o pior e isso acontecesse de verdade, com certeza os invasores do espaço sideral se afogariam no oceano da guerra legítima do povo!



Nessa hora percebi que ele não sabia que eu já havia respondido. Quando coloquei a resposta no buffer de transmissão, não usei a interface de arquivo normal. Por sorte, isso evitou o programa de monitoramento dele.



— Ye Wenjie, eu tinha certeza de que você era capaz de algo assim. Você sempre alimentou um ódio profundo pelo Partido e pelo povo. Aproveitaria qualquer oportunidade para se vingar. Você sabe quais são as consequências de suas ações?



Claro que eu sabia, então confirmei com a cabeça. Lei ficou quieto por um instante, mas depois falou algo inesperado.

— Ye Wenjie, não tenho nenhuma pena de você, que sempre foi uma inimiga de classe e encara o povo como um adversário. Mas eu servi durante muitos anos com Yang. Não posso permitir que ele seja destruído junto com você nem admito que o filho dele também seja. Você está grávida, não é?



O que ele disse não era apenas especulação. Naqueles tempos, se meus atos fossem revelados, fatalmente teriam comprometido meu marido, mesmo se ele não tivesse tido nenhum envolvimento.



Lei falou com um tom de voz muito baixo.



— Por enquanto, só você e eu sabemos o que aconteceu. O que precisamos fazer é minimizar o impacto de suas ações. Finja que isso nunca aconteceu e não conte para ninguém, muito menos para Yang. Deixa que eu cuido do resto. Se você cooperar, poderá evitar as consequências desastrosas.



Percebi na hora as intenções de Lei. Ele queria ser o primeiro homem a descobrir a inteligência extraterrestre. Realmente era uma oportunidade excelente de entrar para os livros de história.



Concordei. Quando fechei a porta, eu já havia decidido tudo.



Peguei uma chave inglesa pequena e fui à sala de equipamentos do módulo de processamento do receptor. Como eu precisava inspecionar os equipamentos com frequência, ninguém reparou.





Abri a caixa principal e afrouxei com cuidado o parafuso que prendia o fio terra na parte de baixo. A interferência do receptor aumentou de repente, e a resistência do solo passou de 0,6 ohms para 5 ohms. O técnico de plantão achou que fosse um problema com o fio terra, porque esse tipo de defeito acontecia o tempo todo. Era um diagnóstico fácil. Ele jamais teria imaginado que o problema era na parte de cima do fio terra, porque aquele lado estava bem firme, abrigado, e eu falei que tinha acabado de conferir.



O cume do pico do Radar tinha uma peculiaridade geológica: era coberto por uma camada de argila com mais de doze metros de espessura — pouca condutividade. Quando o fio terra não estava bem enterrado, a resistência do solo invariavelmente ficava muito alta. No entanto, o fio terra também não podia ir muito fundo, porque a camada de argila era muito corrosiva e, com o tempo, acabaria danificando o meio do fio terra. No fim das contas, a única solução foi pendurar o fio terra por cima do penhasco até a ponta passar da camada de argila e enterrar a ponta na rocha. Mesmo assim, o aterramento não era muito estável, e a resistência costumava ser excessiva. Quando esse tipo de problema acontecia, sempre tinha relação com a parte do fio cravada no penhasco. Quem fosse enviado para o conserto precisava se pendurar em cordas e descer pelo paredão.



O técnico de plantão informou a situação à equipe de manutenção. Um dos soldados da equipe prendeu uma corda em um poste de ferro e desceu pelo penhasco. Depois de meia hora, subiu de novo, encharcado de suor, e disse que não conseguiu achar o defeito. Parecia que a sessão de monitoramento seguinte teria que ser postergada. Eles precisavam informar o Centro de Comando da Base. Fiquei esperando do lado do poste de ferro em cima do penhasco. Pouco tempo depois, como eu tinha planejado, Lei Zhicheng voltou com o soldado.

A bem da verdade, Lei era muito dedicado e cumpria à risca as expectativas impostas a oficiais políticos naqueles tempos: tornar-se parte das massas e sempre estar na linha de frente. Talvez fosse só teatro, mas ele interpretava muito bem. Quando havia algum trabalho difícil ou perigoso na base, ele sempre se prontificava. Um dos trabalhos que ele fazia mais do que os demais era consertar o fio terra, uma operação perigosa e cansativa. Embora esse reparo não fosse muito difícil em termos técnicos, ter experiência ajudava. Havia muitas causas para os defeitos: um contato podia estar frouxo devido à exposição ao ar — algo difícil de detectar —, o lugar onde o fio terra entrava no penhasco podia estar seco demais etc. Os soldados voluntários responsáveis pela manutenção da parte externa da base eram todos novatos, e ninguém tinha muita experiência. Então imaginei que Lei provavelmente ia aparecer.

Ele prendeu o equipamento de segurança e desceu pela borda do penhasco com a corda, como se eu não existisse. Depois de inventar uma desculpa para me livrar do soldado que tinha vindo com Lei, fiquei sozinha no penhasco e retirei uma serra de arco pequena do bolso. Eu tinha quebrado uma serra maior em três pedaços e juntado tudo lado a lado. Com as serras assim, qualquer corte que eu fizesse ficaria bastante irregular, e não seria óbvio que a corda tinha sido cortada com uma ferramenta.



Nessa hora, meu marido, Yang Weining, apareceu.



Quando expliquei o que tinha acontecido, ele olhou para baixo no penhasco e disse que, para verificar o terminal de aterramento no costado do penhasco, era preciso cavar, e seria trabalho





demais para Lei fazer sozinho. Ele queria descer e ajudar, então prendeu o equipamento de segurança que o soldado tinha deixado para trás. Pedi para Yang usar outra corda, mas ele disse que não — a corda de Lei era grossa e resistente e aguentaria sem problema o peso dos dois. Como insisti, ele me mandou buscar outra. Quando voltei correndo com a corda até o penhasco, ele já havia descido pelo costado. Dei uma olhada pela borda e vi que ele e Lei já haviam terminado a inspeção e estavam subindo de volta. Lei vinha na frente.

Eu nunca teria outra chance. Peguei a serra e cortei a corda.



INVESTIGADOR: Quero fazer uma pergunta, mas não vou registrar a resposta nos autos. O que a senhora sentiu na hora?



YE: Calma. Não senti nada quando cortei a corda. Eu tinha enfim descoberto um propósito para dedicar minha vida. Não dava a mínima para o que isso ia custar, fovsse para mim ou para outras pessoas. E também sabia que a humanidade toda pagaria um preço sem precedentes por esse propósito. Foi um começo muito insignificante.



INVESTIGADOR: Muito bem. Prossiga.



YE: Escutei uns dois ou três gritos de surpresa e, em seguida, o barulho de corpos batendo nas pedras no fundo do penhasco. Algum tempo depois, vi que o riacho no sopé do penhasco tinha ficado vermelho… Não tenho mais nada a acrescentar.



INVESTIGADOR: Compreendo. Este é o depoimento. Por favor, leia com cuidado. Se não houver erros, por favor, assine.







26. NINGUÉM SE ARREPENDE





A morte de Lei e Yang foi tratada como acidente. Todo mundo na base sabia que Ye e Yang eram um casal feliz, e ninguém desconfiou dela.



A base recebeu um comissário novo, e a rotina retomou a paz de sempre. A vida miúda crescia dentro de Ye a cada dia, e ela também sentiu o mundo exterior mudar.



Certo dia, o comandante do pelotão de segurança pediu para Ye ir até o portão da entrada da base. Quando ela se aproximou da guarita, ficou surpresa ao ver três adolescentes: dois meninos e uma menina, com cerca de quinze ou dezesseis anos. Os três estavam com casacos velhos e gorros de chinchila. O guarda de plantão disse que eles tinham vindo da cidadezinha de Qijiatun. Tinham ouvido falar que as pessoas no pico do Radar eram inteligentes e queriam fazer algumas perguntas relacionadas aos estudos.



Ye estranhou o fato de os jovens se atreverem a subir até o pico do Radar. Aquela era uma área militar restrita, e os guardas tinham autorização para disparar sem aviso. O guarda viu a confusão de Ye e explicou que eles tinham acabado de receber ordens para reduzir o nível de segurança da Base Costa Vermelha. As pessoas da região agora tinham permissão de subir ao pico do Radar, desde que não entrassem na base. Alguns camponeses já haviam aparecido no dia anterior para levar legumes.



Um dos adolescentes pegou um velho livro didático de física. Suas mãos estavam sujas e pareciam grosseiras como casca de árvore. Com um sotaque carregado do nordeste chinês, ele fez uma pergunta simples: o livro didático dizia que um corpo em queda livre sofre aceleração constante, mas sempre acaba alcançando uma velocidade terminal. Eles tinham passado noites pensando naquilo e não conseguiam entender por quê.



— Vocês vieram até aqui só para me perguntar isso? — quis saber Ye.



— Professora Ye, a senhora não sabe do exame? — perguntou a menina, empolgada.



— Exame?



— O Exame Nacional de Admissão Universitária! Quem estudar muito e tirar a melhor nota vai poder ir para a faculdade! Começou há dois anos. A senhora não sabia?

— Não precisa mais de recomendações?



— Não. Qualquer um pode fazer o exame. Até os filhos das Cinco Categorias Pretas da cidade.1



Ye ficou chocada. Essa mudança a deixou com sentimentos conflitantes. Demorou um pouco até ela perceber que os adolescentes ainda estavam esperando, com os livros nas mãos. Ela tratou de responder logo, explicando que o motivo era o equilíbrio da resistência do ar com a força da gravidade. Em seguida, Ye prometeu que eles podiam vir sempre que quisessem ajuda dela com qualquer dificuldade nos estudos.



Três dias depois, sete adolescentes foram procurar Ye: além dos três daquela primeira vez, outros quatro, que vinham de cidades ainda mais distantes. Na terceira vez, o número de adolescentes chegou a quinze, e até um professor de uma escola de ensino médio de uma cidadezinha marcou presença.



Como havia escassez de professores, ele precisava dar aulas de física, matemática e química e queria pedir a ajuda de Ye. O homem tinha mais de cinquenta anos, e seu rosto já era muito enrugado. Ele estava muito nervoso ao encontrar Ye e derrubou livros para todos os lados. Depois que o grupo saiu da guarita, Ye o ouviu falar para os alunos:

— Crianças, aquela era uma cientista. Uma cientista de verdade!



A partir de então, ela passou a dar aulas para crianças e adolescentes com alguma frequência. Às vezes, eram tantos que a guarita não dava conta de abrigar todo mundo, então, com a permissão dos oficiais responsáveis pela segurança da base, os guardas acompanhavam o grupo até o refeitório. Lá, Ye instalara um pequeno quadro-negro e ensinava crianças e adolescentes.

Já estava escuro quando Ye terminou seu turno na véspera do ano-novo chinês de 1980. A maioria das pessoas na base já havia saído do pico do Radar para o feriado de três dias, e o lugar estava todo em silêncio. Ye voltou para o quarto: antigamente, tinha sido um lar para ela e Yang Weining, mas agora estava vazio. A única companhia de Ye era o bebê em seu ventre. Do lado de fora, o vento frio da noite na cordilheira Grande Khingan uivava e trazia o som distante dos fogos de artifício que explodiam na cidade de Qijiatun. A solidão pesava sobre Ye como uma mão gigantesca, e ela se sentiu esmagada, comprimida, pequena a ponto de desaparecer em um canto invisível do universo…



Até que alguém bateu à porta. Quando ela abriu, viu o guarda e, atrás dele, a luz de várias tochas feitas com galhos de pinheiro tremeluzindo no vento gelado. As tochas estavam nas mãos de uma multidão de crianças e adolescentes, rostos vermelhos por causa do frio e cristais de gelo pendurados nos gorros. Quando entraram no cômodo, parecia que o ar frio tinha entrado junto. Dois adolescentes, com pouco agasalho, tinham passado ainda mais frio que os outros: o casaco grosso deles estava enrolado em algo que seguravam nos braços. Quando os casacos foram retirados, Ye viu uma grande panela, cheia de repolho fermentado e bolos de carne de porco fumegantes de quente.





Naquele ano, oito meses depois de enviar o sinal para o sol, Ye entrou em trabalho de parto. Como o bebê estava em uma posição difícil e o corpo dela estava debilitado, a enfermaria da base não conseguiu fazer o parto e precisou mandá-la para o hospital da cidade mais próxima.

Esse foi um dos momentos mais difíceis da vida de Ye. Depois de sofrer muita dor e perder uma grande quantidade de sangue, ela entrou em coma. Em meio a uma névoa, ela só via três sóis quentes e ofuscantes girando ao seu redor, queimando seu corpo sem piedade. Ela ficou nesse estado por algum tempo e pensou, confusa, que provavelmente aquele era o fim. Não era o fim, mas o inferno: o fogo dos três sóis iria atormentá-la e queimá-la para sempre. Era o castigo por sua traição, uma traição que superava qualquer outra. Ela mergulhou no pavor: não pela





própria vida, mas pela do bebê ainda por nascer — a criança ainda estaria dentro dela? Ou já havia nascido naquele inferno para sofrer por toda a eternidade junto com ela?



Ye não fazia ideia de quanto tempo tinha se passado. Aos poucos, os três sóis se afastaram. Quando chegaram a determinada distância, de repente se encolheram e viraram estrelas voadoras cristalinas. O ar em volta de Ye resfriou, e a dor diminuiu. Enfim, ela acordou.

Ye ouviu alguém chorar perto dela. Ao virar a cabeça com muito esforço, viu o rostinho rosado e molhado da criança.



O médico disse que Ye havia perdido mais de dois litros de sangue. Dezenas de camponeses de Qijiatun tinham ido até lá para doar sangue para ela. Muitos dos camponeses eram pais de alunos de Ye, mas a maioria não tinha nenhuma relação com ela, só havia ouvido falar dela pela boca das crianças e dos pais. Sem essas pessoas, Ye com certeza teria morrido.

A situação de Ye virou um problema após o nascimento da filha. O parto difícil abalara sua saúde. Ela não tinha como permanecer na base sozinha com a bebê, e não havia nenhum parente para ajudar. Foi quando um casal de idosos em Qijiatun conversou com os líderes da base, para explicar que poderiam acolher Ye e a criança. O senhor fora caçador e também colhia ervas para usar em medicina tradicional. Mais tarde, quando a floresta da região foi completamente derrubada pelo desmatamento, o casal recorreu à agricultura, mas as pessoas continuavam acostumadas a chamá-lo de Caçador Qi. Eles tinham dois filhos e duas filhas. As filhas haviam se casado e saído de casa. Um dos filhos era soldado e estava longe, e o outro era casado e morava com eles. A nora também havia acabado de dar à luz.

Ye ainda não tinha sido reabilitada politicamente, e a liderança da base não se sentia muito confiante com a solução sugerida. Porém, no fim das contas, como não havia alternativa, foi permitido que o casal usasse um trenó para levar Ye e a criança do hospital para casa.

Ela passou mais de seis meses com essa família de camponeses na cordilheira Grande Khingan. Estava tão debilitada após o parto que não produziu leite, então a criança, Yang Dong, foi amamentada por todas as mulheres da cidadezinha. A que mais a amamentava era Feng, a nora do Caçador Qi. Feng tinha o porte robusto e vigoroso das mulheres do nordeste chinês. Comia sorgo todos os dias, e seus seios grandes eram cheios de leite, embora tivesse que amamentar dois bebês ao mesmo tempo. Outras amas de leite de Qijiatun também amamentavam Yang Dong. Elas gostavam da menina, diziam que tinha o mesmo ar inteligente da mãe.



Aos poucos, a casa do Caçador Qi se tornou um ponto de encontro para todas as mulheres da cidade. Velhas e jovens, todas gostavam de passar lá quando não tinham mais nada para fazer. Eram curiosas e admiravam Ye, que percebeu que podia conversar sobre muitos assuntos com elas.

Por várias vezes, Ye pegou Yang Dong no colo e se sentou com as outras mulheres da cidade no quintal, cercadas por troncos de bétulas. Perto do grupo, um cachorro preto preguiçoso cochilava e as crianças brincavam, aproveitando o sol quente. Ye prestava atenção principalmente nas mulheres que pitavam cachimbos de cobre, soprando a fumaça sem pressa. Preenchida pela luz do sol, a fumaça refletia um brilho prateado que se parecia muito com o pelo fino dos braços e pernas rechonchudos delas. Certa vez, uma passou para Ye a piteira comprida do cachimbo de cobre e níquel, dizendo que aquilo a faria se sentir melhor. Ye deu só duas tragadas e já ficou se sentindo tonta, e as mulheres riram da história por dias.

Com os homens, Ye não tinha muito assunto. As questões que pareciam ocupá-los o dia inteiro também pareciam além da compreensão dela. Ye percebeu que eles estavam interessados em plantar ginseng para vender, já que o governo sinalizava um afrouxamento nas medidas políticas, mas ninguém chegou a criar coragem para tentar. Todos tratavam Ye com muito respeito e educação. Ela não reparou muito nisso, a princípio. No entanto, com o tempo, depois de observar aqueles homens espancando as esposas e flertando descaradamente com as viúvas da cidade, dizendo coisas que deixariam qualquer um constrangido, ela enfim percebeu o valor do respeito deles. Vez ou outra, um deles pegava uma lebre ou um faisão e levava para a casa do Caçador Qi. Também davam para Yang Dong brinquedos estranhos e curiosos, que tinham feito com as próprias mãos.

Ye lembrava aqueles meses como se pertencessem a outra pessoa, como se fossem um segmento de outra existência que o vento levara para a vida dela como uma pena. Esse período ficou gravado em sua memória como uma série de pinturas clássicas — não pinturas chinesas, mas quadros a óleo europeus. Pinturas chinesas eram cheias de espaços em branco, mas a vida em Qijiatun não tinha nenhum espaço em branco. Era cheia de cores marcantes, densas, sólidas como as pinturas a óleo clássicas. Tudo era quente e intenso: as camas kang aquecidas, forradas com camadas grossas de junco, o tabaco artesanal enfiado em cachimbos de cobre, a comida pesada e massuda à base de sorgo, o baijiu destilado a partir do sorgo com teor alcoólico de mais de trinta por cento — tudo mesclado a uma vida tranquila e pacífica, como o córrego no final da cidade.



A parte mais memorável para Ye eram as noites. Como o filho do Caçador Qi tinha se mudado para a metrópole para vender cogumelos — foi o primeiro a sair da cidadezinha para ganhar dinheiro em outro lugar —, Ye dividia um quarto na casa com Feng. Naquela época, a cidade não tinha energia elétrica, então as duas passavam todas as noites encolhidas em volta de uma lamparina de querosene — Ye ficava lendo, e Feng tricotava. Sem perceber, Ye ia chegando cada vez mais perto da lamparina, e com alguma frequência o cabelo acabava ficando chamuscado. Quando isso acontecia, as duas se olhavam e sorriam. Claro que isso nunca acontecia com Feng: ela enxergava muito bem e conseguia trabalhar com detalhes mesmo na luz fraca do carvão aceso. Os dois bebês, com menos de seis meses, dormiam juntos na kang perto delas. Ye adorava vê-los dormir, quando a respiração tranquila deles era o único som dentro do quarto.



A princípio, Ye não gostava de dormir na kang aquecida, e vivia adoecendo, mas com o tempo se acostumou. Durante o sono, ela se imaginava um bebê dormindo em algum colo quente. A pessoa que a segurava não era seu pai, nem sua mãe, nem tampouco o marido. Ela não sabia quem era. A sensação parecia tão real que ela acordava com o rosto coberto de lágrimas.



Certa noite, Ye abaixou o livro e viu que Feng tinha parado de costurar o sapato de pano. Ela estava imóvel, segurando o sapato em cima do joelho e encarando a lamparina. Quando se deu conta de que Ye estava olhando para ela, Feng perguntou:



— Irmã, por que você acha que as estrelas do céu não caem?



Ye observou Feng. A lamparina de querosene era uma artista maravilhosa e criava uma pintura com cores elegantes e traços fortes: Feng estava com o casaco pendurado nos ombros, deixando aparecer a cinta vermelha e o braço forte e gracioso. A luz da lamparina pintava sua silhueta com cores quentes e vívidas, enquanto o resto do cômodo se dissolvia em uma escuridão suave. Um olhar atento revelava um leve brilho avermelhado que não vinha da lamparina de querosene, e sim do carvão aceso no chão. O ar frio do lado de fora esculpia belas formas de gelo nos vidros da janela com o ar quente e úmido do cômodo.

— Você tem medo que as estrelas caiam? — perguntou Ye, em voz baixa. Feng riu e balançou a cabeça.

— Para que ter medo? Elas são pequenas.

Ye não respondeu como uma astrofísica.

— Elas estão muito, muito longe — se limitou a dizer. — Não têm como cair.

Feng ficou satisfeita com a resposta e continuou costurando. Mas Ye não se sentia mais em paz. Ela abaixou o livro, recostou-se na superfície quente da kang e fechou os olhos. Com a imaginação, viu o resto do universo em volta da cabana minúscula desaparecer, como as trevas do cômodo sendo cobertas pela lamparina de querosene. Ela substituiu o universo ingênuo do coração de Feng pelo verdadeiro. O céu noturno era um domo preto que cobria o mundo inteiro. A superfície do domo estava incrustada de estrelas infinitas, que brilhavam com uma luz prateada cristalina, e nenhuma era maior do que o espelho em cima da velha mesa de madeira ao lado da cama. O mundo era plano e ia muito longe em todas as direções, mas por todos os lados havia uma beirada que encontrava o céu. A superfície plana estava coberta de cordilheiras como a Grande Khingan, e de florestas cheias de cidadezinhas minúsculas, exatamente como Qijiatun… Esse universo de brinquedo consolou Ye e, aos poucos, saiu de sua imaginação e entrou em seus sonhos.



Naquele povoado minúsculo no meio das montanhas da Grande Khingan, finalmente alguma parte do coração de Ye Wenjie se derreteu. Na gélida tundra de sua alma, surgiu um lago minúsculo e límpido de água de degelo.





Com o tempo, Ye acabou voltando para a Base Costa Vermelha com Yang Dong. Passaram-se outros dois anos, com fases de ansiedade e de paz. Foi quando Ye recebeu um aviso: tanto ela como o pai haviam sido reabilitados politicamente. Pouco depois, chegou uma carta da Universidade Tsinghua, declarando que ela poderia voltar para as salas de aula quando quisesse. Junto com a carta veio uma quantia em dinheiro: o pagamento retroativo devido ao pai dela após a reabilitação. Enfim, nas reuniões internas da base, os supervisores de Ye poderiam chamá-la de camarada.



Ye encarou todas essas mudanças com neutralidade, sem demonstrar qualquer sinal de entusiasmo ou de alegria. Ela não tinha interesse algum pelo mundo exterior e só queria continuar no isolamento tranquilo da Base Costa Vermelha. Mas, pensando na educação de Yang Dong, decidiu sair da base, onde havia imaginado que passaria o resto da vida, e voltou para a faculdade.



Quando desceu das montanhas, Ye teve a sensação de que era primavera por todos os lados. O inverno gelado da Revolução Cultural realmente tinha chegado ao fim, e tudo estava renascendo.





Embora a calamidade tivesse acabado pouco antes, estava tudo arruinado, e uma infinidade de homens e mulheres ia se recuperando. Já estava em evidência o alvorecer de uma nova vida: estudantes com seus próprios filhos apareciam no campus das universidades; livrarias vendiam obras literárias famosas; as fábricas começavam a priorizar a inovação tecnológica; pesquisadores científicos adquiriam um status prestigiado. A ciência e a tecnologia eram as únicas chaves para o futuro, e as pessoas buscavam a ciência com a fé e a sinceridade de crianças no primário. Ainda que os esforços fossem ingênuos, eram também realistas. No I Congresso Nacional de Ciências, Guo Moruo, o presidente da Academia Chinesa de Ciências, declarou aberta a temporada de renascimento e renovação da prejudicada classe científica da China.



Seria esse o fim da loucura? A ciência e a racionalidade estavam voltando de verdade? Ye pensava nessas perguntas muitas vezes.



Ela nunca voltou a receber uma comunicação de Trissolaris. Sabia que precisaria esperar pelo menos oito anos até chegar a resposta daquele mundo e, ao sair da base, perdeu acesso a qualquer possibilidade de receber notícias extraterrestres.



Foi uma atitude muito importante, e no entanto Ye tomara por conta própria. Parecia surreal. Com o passar do tempo, essa sensação de surrealidade ficou ainda mais forte. O que havia acontecido parecia uma ilusão, um sonho. O sol era mesmo capaz de amplificar sinais de rádio? Ela havia mesmo usado o astro como uma antena para enviar a mensagem da civilização humana para o universo? Havia realmente chegado uma mensagem das estrelas? Aquela manhã sangrenta em que Ye traiu toda a humanidade havia acontecido de verdade? E aqueles assassinatos…?



Ye tentou mergulhar de cabeça no trabalho para esquecer o passado… e quase conseguiu. Por um estranho instinto de autodefesa, ela parou de lembrar o passado, parou de pensar no contato estabelecido com outra civilização. A vida seguiu assim, dia a dia, em paz.



Depois de algum tempo na Universidade Tsinghua, Ye levou Dong Dong para conhecer a avó, Shao Lin. Pouco tempo após morte do marido, Shao se recuperou do colapso mental e deu um jeito de sobreviver nas brechas minúsculas da política. Seus esforços para navegar a favor dos ventos políticos e bradar os bordões certos compensaram e, mais tarde, durante a fase “Retornem à escola, continuem a revolução”, ela voltou a dar aulas.2



Mas então Shao fez algo que ninguém esperava: ela se casou com um quadro perseguido do alto escalão do Ministério da Educação. Naquela época, o quadro ainda morava em um “estábulo” de reforma pelo trabalho.Isso fazia parte do plano de longo prazo de Shao: ela sabia que o caos na sociedade não ia durar muito. Como os jovens rebeldes que atacavam tudo o que viam não tinham experiência alguma com a administração de um país, mais cedo ou mais tarde os velhos quadros perseguidos e afastados voltariam ao poder.



A aposta dela deu certo. Antes mesmo do fim da Revolução Cultural, seu marido foi restituído ao cargo antigo. Pouco depois da Terceira Plenária do 11º Comitê Central do PCC,ele foi promovido a vice-ministro. Nesse panorama, Shao Lin também teve uma ascensão rápida quando os intelectuais voltaram a ser prestigiados. Após ingressar para a Academia Chinesa de Ciências, ela teve a sensatez de sair da faculdade antiga e foi promovida a vice-reitora em outra universidade famosa.





Para Ye Wenjie, essa nova versão de sua mãe era exatamente o modelo de mulher culta que sabia tomar conta de si mesma. Não existia sinal algum da perseguição que ela havia enfrentado. Shao recebeu Ye e Dong Dong com entusiasmo, perguntou sobre aqueles anos da vida de Ye com um tom preocupado, ficou impressionada com a beleza e a inteligência de Dong Dong e deu orientações meticulosas à cozinheira para o preparo dos pratos preferidos da filha. Tudo foi feito com habilidade, tato e uma porção adequada de carinho. Mas Ye detectava com clareza um muro invisível entre ela e a mãe. As duas evitavam com cuidado temas delicados e não tocaram nenhuma vez no nome do pai de Ye.

Depois do jantar, Shao Lin e o marido acompanharam Ye e Dong Dong até a rua para se despedir. Shao Lin entrou antes, e o vice-ministro trocou uma palavrinha com Ye. Em um instante, o sorriso gentil dele se transformou em gelo, como se ele enfim tivesse tirado a máscara.



— Vamos adorar receber a visita de vocês duas no futuro com uma condição: não tente cobrar dívidas históricas antigas. Sua mãe não tem nenhuma responsabilidade pela morte do seu pai. Ela também foi uma vítima. Seu pai se agarrou à própria fé de maneira nociva e insistiu em seguir por um beco sem saída. Ele abandonou a responsabilidade que devia ter com a família e só trouxe sofrimento para você e sua mãe.

— Você não tem o direito de falar do meu pai — respondeu Ye, com a voz cheia de raiva. — Esse assunto eu resolvo com minha mãe. Não é da sua conta.

— Tem razão — disse o marido de Shao Lin, com frieza. — Só estou repassando a mensagem dela.

Ye olhou para o prédio residencial reservado para quadros do alto escalão. Shao Lin tinha puxado um canto da cortina para olhar para eles. Sem falar mais nada, Ye se abaixou para pegar Dong Dong e foi embora. E não voltou nunca mais.





Por muito tempo Ye procurou informações sobre as quatro guardas-vermelhas que mataram seu pai e, por fim, conseguiu encontrar três delas. As três foram enviadas para o campoe depois voltaram à cidade, e todas estavam desempregadas. Ye descobriu o endereço delas e mandou uma carta curta para cada uma, pedindo um encontro nos campos de exercício onde seu pai havia morrido. Só para conversar.



Ye não tinha nenhum desejo de vingança. Naquela manhã da transmissão na Base Costa Vermelha, ela já havia se vingado de toda a raça humana, incluindo aquelas guardas-vermelhas. Ainda assim, queria ouvir o remorso daquelas assassinas, queria ver um vestígio qualquer do retorno da humanidade.



Naquela tarde, depois das aulas, Ye esperou as três nos campos de exercício. Ela não alimentava muitas esperanças, e tinha quase certeza de que o trio não compareceria. Mas, na hora marcada, todas apareceram.



Ye reconheceu as três de longe, porque estavam usando as fardas verdes, já raras. Quando se aproximaram, Ye percebeu que as fardas provavelmente eram as mesmas que elas haviam usado naquele fatídico dia. As roupas estavam desbotadas de tanto lavar, e havia remendos por todas as partes. Além das fardas, nada naquelas três mulheres de trinta e poucos anos lembrava as três





jovens guardas-vermelhas que haviam parecido tão valentes naquela sessão de luta. Elas não haviam perdido apenas a juventude.



A primeira impressão de Ye foi a de que, embora as três no passado parecessem cópia uma da outra, elas eram muito diferentes entre si. Uma delas se tornara uma mulher muito magra e baixa, e a farda ficava folgada nela. Mostrava sinais da idade, com as costas encurvadas e o tom amarelado no cabelo. Outra era tão corpulenta que os botões do paletó da farda nem fechavam. O cabelo estava bagunçado, e o rosto tinha uma expressão grave, como se a vida difícil tivesse eliminado qualquer delicadeza e deixado apenas insensibilidade e truculência. A terceira mulher ainda mostrava resquícios da juventude, mas uma das mangas da farda estava vazia e balançava livremente à medida que ela andava.

As três antigas guardas-vermelhas pararam enfileiradas diante de Ye — a mesma posição que haviam mantido diante de Ye Zhetai —, tentando retomar a dignidade há muito esquecida. Mas a energia espiritual demoníaca que as impulsionara naqueles tempos não existia mais. A mulher magra tinha cara de fuinha. O rosto da corpulenta parecia vazio. A mulher sem um dos braços olhava para o céu.



— Você achou que a gente não teria coragem de vir? — perguntou a mulher corpulenta, tentando soar provocativa.

— Só achei que devíamos nos ver. É preciso colocar algum tipo de ponto final no passado — disse Ye.

— O passado ficou para trás. Você devia saber. — A mulher magra falou com rispidez, como se vivesse com medo de alguma coisa.

— Estou me refiro a um fim espiritual.



— Então você quer que a gente se arrependa? — perguntou a mulher corpulenta.



— Vocês não acham que deveriam?



— E aí quem é que vai se arrepender por nós? — perguntou a outra mulher.



— De nós quatro — disse a corpulenta —, três tinham assinado o cartaz de caracteres grandes no colégio ligado à faculdade. Roteiros revolucionários, os grandes comícios na Praça da Paz Celestial, as Guerras Civis da Guarda Vermelha, Primeiro Quartel-General Vermelho, Segundo Quartel-General Vermelho, Terceiro Quartel-General Vermelho, Comitê de Ação Conjunta, Protestos Ocidentais, Protestos Orientais, Comuna da Universidade de Beijing, Grupo de Combate Bandeira Vermelha, O Oriente É Vermelho… passamos por todos os marcos da história da Guarda Vermelha, do nascimento à morte.

A mulher que não tinha um dos braços tomou a palavra.



— Durante a Guerra de Cem Dias em Tsinghua, duas de nós fizeram parte do Corpo da Montanha Jinggang, e duas da Facção Catorze de Abril. Eu peguei uma granada e ataquei um tanque improvisado da facção da montanha Jinggang. Meu braço foi esmagado pela lagarta do tanque. Meu sangue, meus ossos e músculos, tudo foi esmigalhado na lama. Eu tinha apenas quinze anos.6



— Depois, fomos mandadas para o meio do nada! — A mulher corpulenta levantou os braços.



— Duas foram para Shaanxi, e duas para Henan, dois lugares dos mais remotos e pobres. Quando fomos, ainda éramos idealistas, mas isso não durou muito. Depois de um dia de trabalho





nos campos, estávamos tão cansadas que não conseguíamos nem lavar a roupa. Deitávamos dentro de barracos de palha cheios de goteira e passávamos a noite ouvindo o uivo dos lobos, e com o tempo fomos acordando dos nossos sonhos. Estávamos perdidas naqueles vilarejos abandonados e ninguém dava a mínima para nós.



Uma delas ficou olhando para o chão, com uma expressão vaga.



— No período que passamos no campo, de vez em quando eu esbarrava em outro camarada ou inimigo da Guarda Vermelha, no meio de uma trilha na terra vazia. A gente olhava um para o outro: as mesmas roupas esfarrapadas, a mesma lama, a mesma sujeira de bosta de vaca. Ninguém tinha nada para falar.



A mulher corpulenta olhou para Ye.



— Tang Hongjing foi a menina que deu o golpe fatal em seu pai. Ela morreu afogada no rio Amarelo. Uma enchente levou algumas das ovelhas da equipe de produção, então o secretário do Partido gritou para os estudantes enviados: “Jovens revolucionários! É hora de testar sua fibra!”. Aí, Hongjing e outros três estudantes mergulharam no rio para salvar as ovelhas. Era o começo da primavera, e a superfície do rio ainda estava coberta por uma camada fina de gelo. Os quatro morreram, ninguém sabe se de frio ou de afogamento. Quando vi os corpos… eu… eu… não consigo mais falar dessa merda.

Ela cobriu os olhos e chorou.



A mulher magra suspirou, com os olhos marejados.



— Depois, mais tarde, voltamos para a cidade. Mas e daí? Continuamos sem nada. Os jovens que voltaram depois de terem sido enviados ao campo não têm vida fácil. Não conseguimos nem os piores empregos. Sem trabalho, sem dinheiro, sem futuro. Não temos nada.

Ye continuou em silêncio.



— Teve um filme recente chamado Bordo — disse a mulher maneta. — Não sei se você já viu. No final, um adulto e uma criança param na frente do túmulo de um guarda-vermelho morto nas guerras civis entre as facções. A criança pergunta para o adulto: “Eram heróis?”. O adulto responde que não. A criança pergunta: “Eram inimigos?”. De novo, o adulto diz que não. A criança pergunta: “Então o que eram?”. O adulto responde: “História”.

— Escutou bem? — A mulher corpulenta agitou um dos braços para Ye. — História! História! Agora estamos em uma nova era. Quem vai se lembrar de nós? Quem vai pensar em nós e em você? Todo mundo vai se esquecer completamente disso!



As três guardas-vermelhas foram embora, e Ye ficou sozinha nos campos de exercício. Mais de doze anos antes, em uma tarde chuvosa, ela também havia permanecido ali sozinha, olhando para o pai morto. As últimas palavras da antiga guarda-vermelha ecoavam sem parar em seus ouvidos…



O pôr do sol criava uma sombra comprida com a silhueta esguia de Ye. O fiapo de esperança pela sociedade surgido em sua alma tinha evaporado como uma gota de orvalho sob o sol. A dúvida ínfima a respeito de sua traição suprema também havia desaparecido sem deixar rastros.

Ye enfim descobriu seu ideal inabalável: trazer para o mundo humano uma civilização superior vinda de outro lugar do universo.


1. As Cinco Categorias Pretas, alvo da Revolução Cultural, eram as cinco identidades políticas usadas durante a revolução: proprietários de imóveis, fazendeiros ricos, contrarrevolucionários, “elementos nocivos” e direitistas.

2. Durante a fase inicial da Revolução Cultural, todas as aulas foram interrompidas nas instituições de ensino superior, médio e fundamental, e os alunos mais velhos se tornaram guardas-vermelhos. Por fim, o caos resultante obrigou a liderança em Beijing a pedir que os alunos voltassem às aulas no final de 1967 e continuassem com a revolução de maneira mais controlada.

3. “Estábulos” eram locais estabelecidos por unidades de trabalho (fábricas, escolas, cidades etc.) durante as primeiras fases da Revolução Cultural, a fim de deter “monstros e demônios” contrarrevolucionários (autoridades acadêmicas reacionárias, direitistas, as Cinco Categorias Pretas etc.).

4. Essa assembleia marcou o início da política de “Reforma e Abertura” e foi considerada o momento em que Deng Xiaoping se tornou o líder da China.

5. Nos anos que se seguiram à Revolução Cultural, membros da juventude urbana, privilegiada e instruída, foram enviados para as regiões rurais pobres nas montanhas, a fim de viver e aprender com os agricultores. Muitos desses “jovens rusticados”, como foram chamados, tinham sido guardas-vermelhos. Há quem diga que essa política foi introduzida pelo presidente Mao para remover das cidades os rebeldes, que estavam descontrolados, e restabelecer a ordem.



6. A Guerra de Cem Dias na Universidade Tsinghua foi uma das guerras civis mais violentas da Guarda Vermelha durante a Revolução Cultural. Disputada por duas facções da Guarda Vermelha, ela se estendeu de 23 de abril a 27 de julho de 1968 e envolveu o uso de armas brancas, armas de fogo, granadas, minas, canhões etc. No final, foram dezoito mortos e mais de 1 100 feridos. Entre estes, mais de trinta sofreram invalidez permanente.







27. EVANS




















Seis meses depois de voltar para a Universidade Tsinghua, Ye começou uma atividade importante: o projeto de um grande observatório de radioastronomia. Ela e a força-tarefa envolvida viajaram pelo país inteiro em busca do melhor lugar para a instalação. As questões iniciais eram estritamente técnicas. Ao contrário da astronomia tradicional, a radioastronomia não dependia tanto de qualidade atmosférica, mas exigia um mínimo de interferência eletromagnética. Eles visitaram muitos lugares até enfim escolherem um com o ambiente eletromagnético mais limpo: uma região montanhosa remota no noroeste chinês.

Aqueles morros de loesse tinham pouca vegetação. Fendas abertas pela erosão faziam com que os sulcos do terreno parecessem rostos velhos e enrugados. Depois de selecionar alguns locais possíveis, a força-tarefa parou para descansar um pouco em uma cidadezinha onde a maioria dos habitantes ainda morava em grutas tradicionais. O líder da equipe de produção da cidade percebeu que Ye era uma pessoa culta e perguntou se ela sabia falar alguma língua estrangeira. Ela perguntou qual língua, e ele respondeu que não sabia. No entanto, se ela soubesse alguma língua estrangeira, ele mandaria alguém subir o morro para chamar Bethune, porque a equipe de produção precisava discutir algo com ele.*

— Bethune? — Ye ficou admirada.



— Como não sabemos o verdadeiro nome dele, só chamamos o estrangeiro assim.



— Ele é médico?



— Não. Planta árvores nos morros. Está nisso há quase três anos.



— Planta árvores? Para quê?



— Ele diz que é para os pássaros. Um tipo de pássaro que ele sugere que está quase extinto. Ye e seus colegas ficaram curiosos e pediram para o líder da equipe de produção levá-los para

ver aquele homem. O grupo seguiu por uma trilha até chegar ao topo de um outeiro. O líder da equipe de produção indicou um ponto no meio dos morros carecas de loesse, e Ye sentiu como se o lugar se iluminasse. Havia um barranco coberto de florestas verdejantes, como se uma tela velha e amarelada tivesse recebido a bênção acidental de um jato de tinta verde.

Ye e os demais logo viram o estrangeiro. Tirando o cabelo louro, os olhos verdes, o jeans puído e o casaco que o faziam parecer um caubói, Ye achou que ele não era muito diferente dos camponeses daquela região que haviam trabalhado a vida inteira. Até a pele tinha o mesmo tom escuro por causa do sol. Ele não demonstrou muito interesse nos visitantes. Apresentou-se como Mike Evans sem falar sua nacionalidade, mas seu inglês tinha um nítido sotaque americano. Ele morava em uma cabana de adobe com dois cômodos, abarrotada de ferramentas para a plantação





de árvores: enxadas, pás, serrotes para podar galhos, entre outras, todas grosseiras e produzidas na cidadezinha. A poeira que permeava todo o noroeste do país formava uma camada fina por cima da cama simples e rústica e dos utensílios de cozinha. Na cama, havia uma pilha de livros, a maioria de biologia. Ye reparou em um exemplar de Libertação animal, de Peter Singer. O único sinal de modernidade era um rádio pequeno ligado a uma pilha D externa. Havia também um telescópio velho.



Evans pediu desculpa aos visitantes por não poder oferecer nada para beber. Já fazia algum tempo que o café havia acabado. Ele tinha água, mas só um copo.



— Por favor, podemos saber o que você está realmente fazendo aqui? — perguntou um dos colegas de Ye.

— Quero salvar vidas.



— Salvar… salvar as pessoas daqui? É verdade que as condições ecológicas desta região…



— Por que vocês todos são assim? — De repente, Evans ficou furioso. — Por que alguém precisa ter que salvar pessoas para ser considerado um herói? Por que salvar outras espécies é considerado insignificante? Quem deu tamanha honraria aos seres humanos? Não, os humanos não precisam ser salvos. Eles já têm uma vida muito melhor do que merecem.

— Ouvimos dizer que você está tentando salvar uma espécie de pássaro.



— Sim, uma andorinha. É uma subespécie da andorinha marrom do noroeste. O nome científico é muito comprido, então não vou entediá-los. A cada primavera, elas viajam por antigas rotas migratórias já conhecidas de volta ao sul. Como só fazem ninhos aqui, à medida que a floresta vai desaparecendo ano a ano, fica cada vez mais difícil encontrar as árvores para construir os ninhos. Quando descobri a subespécie, menos de dez mil haviam sobrado. Se continuar nesse ritmo, essas andorinhas vão estar extintas em até cinco anos. As árvores plantadas proporcionaram um habitat para algumas, e a população está crescendo de novo. Preciso plantar mais árvores e expandir este éden.



Evans deixou Ye e os outros olharem pelo telescópio. Com a ajuda dele, o grupo enfim viu alguns pássaros pretos minúsculos voando entre as árvores.

— Não são muito bonitos, não é? Claro, não são tão atraentes para o público quanto os pandas gigantes. Todos os dias, alguma espécie deste planeta que não chama a atenção dos seres humanos entra em extinção.



— Você plantou todas essas árvores sozinho?



— A maioria. No começo, contratei algumas pessoas daqui da região, mas o dinheiro acabou logo. Mudas e irrigação custam caro… mas querem saber? Meu pai é bilionário. Ele é presidente de uma multinacional do petróleo, mas não quer me bancar mais, e eu também não quero mais usar o dinheiro dele.



Depois que Evans se abriu, parecia que estava com vontade de desabafar.



— Quando eu tinha doze anos, um navio-petroleiro de trinta mil toneladas da empresa do meu pai encalhou na costa do Atlântico. Mais de vinte mil toneladas de petróleo bruto vazaram no mar. Na época, minha família estava em uma casa de férias na praia, não muito longe do lugar do acidente. Quando meu pai ficou sabendo da notícia, a primeira coisa que ele pensou foi em um jeito de evitar a responsabilidade e minimizar os danos para a empresa.





“Naquela tarde, eu fui para a praia condenada. O mar estava preto, e as ondas, debaixo da película espessa e viscosa de petróleo, eram pequenas e fracas. A areia também estava coberta com uma camada preta de petróleo bruto. Junto com alguns voluntários, fui à praia procurar pássaros ainda vivos. As aves estavam tentando se mexer no petróleo viscoso e pareciam estátuas pretas feitas de asfalto. A única indicação de que ainda estavam vivas eram os olhos. Aqueles olhos, me encarando no meio do petróleo, até hoje me perseguem nos meus sonhos. Enchemos aqueles pássaros de detergente para tentar tirar o petróleo grudado no corpo, mas era extremamente difícil: as penas estavam encharcadas de petróleo bruto e, se a gente esfregasse com força demais, saíam junto com o petróleo… À noite, a maioria dos pássaros tinha morrido. Eu estava sentado na praia preta, exausto e coberto de petróleo, olhando para o pôr do sol no mar escuro e sentindo que aquilo era o fim do mundo.

“Meu pai apareceu atrás de mim sem que eu percebesse. Ele perguntou se eu ainda me lembrava do pequeno esqueleto de dinossauro. Claro que eu lembrava: o esqueleto quase completo fora descoberto durante uma prospecção. Meu pai gastou uma fortuna para comprá-lo e o instalou no terreno da mansão de meu avô.



“E aí, meu pai disse: ‘Mike, eu já falei como os dinossauros foram extintos. Um asteroide caiu na Terra. O mundo se transformou em um mar de fogo, e depois se seguiu um período longo de escuridão e frio… Um dia, você acordou no meio da noite por causa de um pesadelo, dizendo que tinha sonhado que estava naquela era terrível. Vou falar agora o que eu tive vontade de dizer naquele dia: você daria sorte se realmente tivesse vivido durante o período Cretáceo. O período em que vivemos hoje é muito mais assustador. Agora, tem espécies na Terra entrando em extinção muito mais rápido do que no fim do Cretáceo. Vivemos hoje a era das extinções em massa! Então, meu filho, o que você está vendo não é nada. Não passa de um episódio insignificante no meio de um processo muito mais vasto. Podemos viver sem aves marinhas, mas não podemos viver sem petróleo. Você consegue imaginar a vida sem petróleo? No seu último aniversário, dei aquela Ferrari linda para você e prometi que poderia dirigi-la assim que fizesse quinze anos. Mas, sem petróleo, ela seria só um monte de metal inútil, e você nunca dirigiria. Hoje, se você quiser visitar seu avô, pode chegar lá com meu jatinho particular e atravessar o oceano em umas doze horas. Mas, sem o petróleo, precisaria ficar boiando em um navio a vela por mais de um mês… Estas são as regras da civilização: a prioridade é garantir a existência da humanidade e a vida confortável. O resto é secundário’.

“Meu pai tinha muita fé em mim mas, no fim das contas, eu não saí do jeito que ele queria. Depois daquela noite, os olhos daquelas aves sufocadas me perseguiram por dias e determinaram o rumo da minha vida. Quando eu tinha treze anos, meu pai me perguntou o que eu queria ser quando crescesse. Falei que queria salvar vidas. Meu sonho não tinha nada de mais: eu só queria salvar alguma espécie ameaçada de extinção. Podia ser um pássaro não muito bonito, uma borboleta sem graça ou um besouro que ninguém sabia que existia. Mais tarde, estudei biologia e me especializei em aves e insetos. Na minha opinião, meu ideal é digno. Salvar uma espécie de pássaro ou inseto não difere em nada de salvar a humanidade. ‘Todas as vidas são iguais’ é o princípio básico do comunismo pan-espécies.”

— O quê? — Ye achou que não tinha ouvido direito a última expressão.





— Comunismo pan-espécies. É uma ideologia que eu inventei. Ou talvez ela possa ser chamada de fé. A crença básica é de que todas as espécies da Terra foram criadas como iguais.

— Essa ideia não se sustenta. Nossas plantações também são espécies vivas. Para a sobrevivência dos seres humanos, esse tipo de igualdade é impossível.

— Os senhores de escravos também devem ter pensado a mesma coisa em relação aos escravos deles no passado. Só não esqueçam a tecnologia: vai chegar um dia em que a humanidade será capaz de fabricar comida. Nós deveríamos estabelecer as bases ideológicas e teóricas muito antes disso. Para dizer a verdade, o comunismo pan-espécies é a continuação natural da Declaração Universal dos Direitos Humanos. A Revolução Francesa foi há duzentos anos, e não avançamos nenhum passo depois dela. Por aí dá para ver a hipocrisia e o egoísmo da raça humana.



— Quanto tempo você pretende ficar aqui?



— Não sei. Estou preparado para dedicar a vida a esse trabalho. O sentimento é lindo. Claro que eu não espero que vocês entendam.

Evans pareceu perder o interesse. Falou que precisava voltar ao trabalho, então pegou uma pá, um serrote e saiu da cabana. Ao se despedir, lançou um olhar para Ye outra vez, como se tivesse visto algo estranho nela.



Na volta, um dos colegas de Ye recitou um trecho do ensaio “À memória de Norman Bethune”:

— “Um homem de nobres sentimentos, um homem íntegro, de alta moral, destituído de interesses vulgares.” — Ele suspirou. — Existem mesmo pessoas capazes de viver assim.

Outros também expressaram admiração e sentimentos contraditórios.



— Se houvesse mais homens como ele — disse Ye, como se estivesse falando sozinha —, ainda que só mais alguns, tudo teria sido diferente.

Obviamente, ninguém entendeu o que ela queria dizer.



O líder da força-tarefa mudou o assunto da conversa para trabalho.



— Acho que este local não vai servir. Nossos superiores não vão aprovar.



— Por que não? Dos quatro locais possíveis, é o que tem o melhor ambiente eletromagnético.



— E o ambiente humano? Camaradas, não olhem apenas pelo lado técnico. Vejam como este lugar é pobre. Quanto mais pobre for a cidade, mais ardiloso é o povo. Estão entendendo? Se o observatório ficasse aqui, haveria problemas entre os cientistas e os habitantes. Dá para imaginar os camponeses achando que o complexo de astronomia é um bife suculento e que podem vir tirar um pedaço.



O local acabou não sendo aprovado, e o motivo foi justamente o mencionado pelo líder da força-tarefa.





Ye passou três anos sem ouvir notícias de Evans.



Até que, em certo dia de primavera, recebeu um bilhete com uma única frase: “Venha para cá.



Diga o que eu devo fazer”.



Ye viajou por um dia e uma noite de trem e, depois, seguiu de ônibus durante muitas horas até chegar à cidadezinha no meio dos morros distantes do noroeste.





Ela avistou mais uma vez a floresta assim que subiu aquele pequeno outeiro. Como as árvores tinham crescido, a vegetação parecia muito mais densa, mas Ye percebeu que a floresta já havia sido maior. Partes mais novas que tinham crescido nos últimos anos já haviam sido cortadas.

O desmatamento corria a todo vapor. Árvores caíam por todos os lados. A floresta inteira parecia uma folha de amoreira que estava sendo devorada por bichos-da-seda. Naquele ritmo, não demoraria até desaparecer por completo. As pessoas que estavam desmatando eram de duas cidades próximas. Com machados e serrotes, derrubavam as árvores jovens uma a uma, antes de levá-las morro abaixo com tratores e carroças. Como eram muitos lenhadores, com frequência acontecia alguma briga entre o grupo.



A queda das árvores não fazia muito barulho, e não se ouvia o zumbido alto de motosserras, mas Ye ficou angustiada com aquela paisagem quase familiar.



O líder da equipe de produção, que tinha se tornado o chefe da cidade, a chamou. Ele havia reconhecido Ye. Quando ela perguntou por que eles estavam derrubando a floresta, o homem respondeu:



— Esta floresta não está protegida pela lei.



— Como não? O Código Florestal acabou de ser promulgado.



— Mas quem deu permissão para Bethune plantar árvores aqui? Um estrangeiro que vem aqui plantar árvores sem nenhuma aprovação não está protegido por nenhuma lei.

— Não dá para pensar assim. Ele estava plantando nos morros desertos e não usou nenhuma terra cultivável. Além do mais, quando ele começou, você não se opôs.

— É verdade. O distrito até deu um prêmio para ele por ter plantado as árvores. A ideia do pessoal da cidade era derrubar a floresta só daqui a alguns anos… é melhor engordar o porco antes do abate, né? Mas aquela gente da cidade de Nange não consegue esperar e, se minha cidade não viesse também, não ia sobrar nada para nós.



— Vocês precisam parar agora mesmo. Vou denunciar isso para o governo!



— Não precisa. — O chefe da cidade acendeu um cigarro e apontou para um caminhão distante, que estava sendo carregado com as árvores derrubadas. — Está vendo ali? Aquilo veio do vice-secretário do Gabinete Florestal do Distrito. E aqui também tem gente da polícia municipal. Esses sujeitos levaram mais árvores do que todo mundo! Já falei, essas árvores não têm nenhum status e não estão sujeitas a proteção. Você não vai encontrar ninguém que se importe. Além disso, camarada, você não é uma professora universitária? O que isso tem a ver com você?



A cabana de adobe parecia igual, mas Evans não estava lá. Ye o encontrou no meio da mata, podando cuidadosamente uma árvore com um machado. Como estava exausto, era óbvio que vinha fazendo aquilo havia algum tempo.



— Não quero saber se não adianta nada. Não posso parar. Se eu parar, vou desmoronar. Evans cortou um galho torto com um gesto hábil.

— Vamos juntos ao governo distrital. Se eles não quiserem fazer nada, vamos ao governo da província. Alguém vai acabar impedindo isso. — Ye olhou para Evans com uma expressão preocupada.



Evans parou e encarou Ye, surpreso. A luz do pôr do sol vazou pelas árvores e fez os olhos dele brilharem.



— Ye, você acha mesmo que estou fazendo isso por causa da floresta? — Ele riu, balançou a cabeça e largou o machado. Sentou-se no chão e apoiou as costas em uma árvore. — Se eu quisesse impedir esses homens, seria simples. Acabei de voltar dos Estados Unidos. Meu pai morreu há dois meses, e eu herdei a maior parte da fortuna. Meu irmão e minha irmã só receberam cinco milhões cada. Foi uma grande surpresa para mim. Acho que, no fundo, ele ainda me respeitava. Ou talvez respeitasse meus ideais. Tirando o ativo imobilizado, sabe quanto dinheiro eu tenho à disposição? Mais ou menos quatro bilhões e meio de dólares. Seria fácil mandar todo mundo parar e plantar mais árvores. Eu poderia encher todos os morros de loesse com uma floresta de crescimento rápido a perder de vista. Mas de que adiantaria?

“Tudo o que você está vendo é resultado da pobreza. Certo, mas em que sentido os países ricos são melhores? Eles protegem o meio ambiente deles, mas transferem as indústrias extremamente poluidoras para outras nações mais pobres. Você deve saber que o governo americano acabou de rejeitar o Protocolo de Kyoto… A humanidade é toda igual. Enquanto a civilização continuar se desenvolvendo, as andorinhas que eu quero salvar e todas as outras vão entrar em extinção. É só uma questão de tempo.”



Também sentada, Ye olhava em silêncio a luz do pôr do sol que atravessava as árvores e ouvia o barulho das motosserras. Seus pensamentos se voltaram para as florestas da cordilheira Grande Khingan, vinte anos antes, onde ela tivera uma conversa parecida com outro homem.

— Você sabe por que eu vim para cá? — continuou Evans. — A semente do comunismo pan-espécies já havia germinado fazia muito tempo no antigo Oriente.

— Você está falando do budismo?



— Sim. O cristianismo gira em torno do homem. Embora todas as espécies tenham sido levadas para a Arca de Noé, outras espécies nunca tiveram o mesmo status do ser humano. Mas o budismo trata de salvar tudo o que é vivo. Foi por isso que vim para o Oriente. Só que… agora está claro que o mundo todo é igual.



— Sim, é verdade. As pessoas são iguais no mundo inteiro.



— O que eu posso fazer? Qual é o propósito da minha vida? Tenho quatro bilhões e meio de dólares e uma multinacional do petróleo. Mas para que serve isso tudo? Os seres humanos já devem ter investido mais de quarenta e cinco bilhões de dólares para salvar espécies à beira da extinção. E provavelmente já gastaram mais de quatrocentos e cinquenta bilhões para impedir que o meio ambiente fosse degradado. Mas de que adianta? A civilização continua avançando e destruindo toda a vida da Terra. Com quatro bilhões e meio dá para construir um porta-aviões, mas, mesmo se construíssemos mil porta-aviões, seria impossível impedir a loucura da humanidade.



— Mike, era isso o que eu queria comentar. A civilização humana não tem mais capacidade de se aprimorar por conta própria.

— Existe algum poder externo à humanidade? Mesmo se Deus tivesse existido em algum momento, Ele já morreu há muito tempo.

— Sim, existem outros poderes.



O sol tinha se posto e os lenhadores haviam ido embora. Ye contou toda a história da Costa





Vermelha e de Trissolaris. Evans ouviu sem falar nada, e parecia que os morros de loesse e a floresta escura estavam ouvindo também. Quando Ye terminou, uma lua luminosa brilhava no leste, lançando pontos de sombras no chão.



— Ainda não consigo acreditar no que você acabou de me falar — disse Evans. — É fantástico demais. Felizmente, tenho os recursos para confirmar isso. Se o que você me falou é verdade — ele estendeu a mão e disse as palavras que todos os futuros membros da OTT teriam que pronunciar ao se filiar —, sejamos camaradas.





Norman Bethune (1890-1939) foi um cirurgião canadense que serviu com os comunistas chineses na resistência à força invasora japonesa durante a Segunda Guerra Mundial. Um dos poucos ocidentais a demonstrar simpatia pelos comunistas chineses, Bethune se tornou um herói chinês popular tanto entre os idosos quanto entre as crianças.








28. SEGUNDA BASE COSTA VERMELHA




Passaram-se mais três anos, e Evans parecia ter sumido. Ye não sabia se ele estava mesmo em algum lugar do mundo tentando confirmar a história dela, e também não fazia ideia de como ele faria essa confirmação. Embora um espaço de quatro anos-luz não fosse quase nada, considerando a escala do universo, ainda assim era uma distância inconcebível para a fragilidade da vida. Os dois mundos eram como a nascente e a foz de um rio que atravessava o espaço sideral: qualquer relação entre as duas pontas seria extremamente atenuada.

Certo inverno, Ye foi convidada por uma universidade não muito proeminente na Europa Ocidental para passar um semestre como professora visitante. Assim que ela desembarcou em Heathrow para a entrevista, um rapaz veio recebê-la. Em vez de sair do aeroporto, eles voltaram para a pista de pouso, e o rapaz a conduziu até um helicóptero.



Quando o helicóptero subiu no céu nublado de Londres, Ye teve um déjà-vu e pareceu voltar no tempo. Muitos anos antes, quando ela viajou de helicóptero pela primeira vez, sua vida se transformou. Aonde o destino a levaria dessa vez?



— Estamos indo para a Segunda Base Costa Vermelha.



O helicóptero foi até o litoral e continuou avançando Atlântico adentro. Meia hora depois, pousou em um navio imenso no meio do mar. Assim que viu o navio, Ye pensou no pico do Radar. Só nesse momento ela se deu conta de que o formato do pico realmente lembrava um navio gigante. O Atlântico parecia a floresta da cordilheira Grande Khingan, mas o que mais a fazia pensar na Base Costa Vermelha era a imensa antena parabólica no meio do navio, erguida de um jeito que parecia uma vela redonda. O navio fora adaptado a partir de um petroleiro de sessenta mil toneladas, como se fosse uma ilha de aço flutuante. Evans havia construído a base em um navio — talvez para que sempre estivesse na melhor posição possível para transmissões e recepções, ou talvez para não ser detectada. Mais tarde, ela descobriu que o nome do navio era Juízo Final.



Ye saiu do helicóptero e ouviu um uivo familiar, o barulho da antena gigantesca cortando o vento sobre o oceano. O som a remeteu outra vez ao passado. O amplo convés embaixo da antena estava abarrotado, com cerca de duas mil pessoas.



Evans foi até ela e disse, com solenidade.



— Com a frequência e as coordenadas que você informou, recebemos uma mensagem de Trissolaris. Confirmamos tudo o que você me disse.

Ye assentiu calmamente com a cabeça.





— A grande Frota Trissolariana já zarpou. O destino é o nosso sistema solar, e eles chegarão daqui a quatrocentos e cinquenta anos.

Ye continuava calma. Nada mais a surpreendia. Evans apontou para a multidão às suas costas.

— Você está olhando para os primeiros membros da Organização Terra-Trissolaris. Nosso ideal é pedir que a civilização trissolariana reforme a civilização humana, que reprima a loucura e o mal da humanidade, para que a Terra possa voltar a ser um mundo harmonioso, próspero, puro. Cada vez mais pessoas se identificam com nosso objetivo, e a organização está crescendo a passos largos. Temos membros no mundo inteiro.

— O que eu posso fazer? — perguntou Ye, com um tom delicado.



— Você será a comandante-chefe do Movimento Terra-Trissolaris. É esse o desejo de todos os combatentes da OTT.

Ye ficou em silêncio por mais alguns segundos. Depois, assentiu com um gesto lento da cabeça.

— Darei o melhor de mim.



Evans ergueu o punho e gritou para a multidão:



— Eliminar a tirania humana!



Em meio ao som das ondas no mar e do vento que urrava junto à antena, os combatentes da



OTT gritaram em coro:



— O mundo pertence a Trissolaris!



Foi nesse dia que o Movimento Terra-Trissolaris começou oficialmente.







29. MOVIMENTO TERRA-TRISSOLARIS






O aspecto mais surpreendente do Movimento Terra-Trissolaris era a quantidade de pessoas que perderam a fé na civilização humana, que odiavam e estavam dispostas a trair a própria espécie, e até que adotavam como ideal máximo a extinção da raça humana, mesmo que sacrificando a própria vida e a dos filhos.



A OTT foi chamada de organização de nobres espirituais. A maioria dos membros pertencia a classes com alto nível de instrução, e muitos filiados faziam parte da elite política e financeira. A OTT tinha tentado atrair integrantes em meio à população comum, mas as iniciativas não deram certo. A OTT concluiu que as pessoas comuns não eram dotadas do mesmo nível de complexidade que as classes mais cultas para compreender o lado sombrio da humanidade. E, acima de tudo, como a ciência moderna e a filosofia não haviam influenciado tanto o modo de pensar dessas pessoas, elas ainda possuíam um senso de identificação instintivo extremamente forte em relação



à própria espécie. Para o vulgo, era inconcebível trair a raça humana como um todo. No entanto, com as elites intelectuais, era diferente: a maioria já havia começado a pensar por uma perspectiva externa à humanidade. A civilização humana enfim havia gerado uma grande força de alienação.



Por mais impressionante que tenha sido a rapidez com que a OTT se desenvolveu, a quantidade de membros não era o único indicador da força da organização. Como a maior parte dos integrantes possuía um status social elevado, eles contavam com muito poder e influência.

Na condição de comandante-chefe dos rebeldes da OTT, Ye era apenas a líder espiritual. Ela não participava dos detalhes da operação da OTT, não sabia como a organização havia crescido tanto e não conhecia nem a quantidade exata de membros.



Para crescer rápido, a organização atuava de maneira semiaberta, mas os governos mundiais nunca deram muita atenção à OTT. A organização sabia que estaria protegida pelo conservadorismo e pela falta de imaginação dos governantes. Nos órgãos que detinham o poder do Estado, ninguém levava as proclamações da OTT a sério, e eles eram considerados só mais um grupo de extremistas bradando asneiras. Além disso, em virtude da posição social dos participantes, a organização sempre era tratada com muito cuidado. Quando enfim foi reconhecida como uma ameaça, os rebeldes já estavam espalhados por todos os lados. Foi só quando a OTT começou a preparar uma força paramilitar que alguns órgãos de segurança nacional passaram a prestar atenção e perceberam que a organização era muito estranha. Por conta disso, só haviam começado a atacar de fato a OTT nos últimos dois anos.

Nem todos os membros da OTT seguiam uma única visão. A organização tinha facções e divergências de opinião delicadas. De modo geral, havia duas facções.


O grupo dos adventistas era o ramo mais puro e fundamentalista da OTT, composto sobretudo de adeptos do comunismo pan-espécies de Evans. Eles haviam desistido completamente da humanidade. A esperança começou a acabar a partir das extinções em massa de diversas espécies causadas pela civilização moderna e, mais tarde, outros adventistas direcionaram seu ódio pela raça humana a outras questões, sem se limitar à ecologia ou à guerra. Alguns levaram o ódio a um nível filosófico muito abstrato. Ao contrário do que viriam a ser considerados no futuro, muitos deles eram realistas e também não alimentavam grandes esperanças na civilização alienígena a que serviam. A traição desse grupo se baseava apenas na desesperança e no ódio pela humanidade. Mike Evans inventou o lema dos adventistas: Não sabemos como é uma civilização extraterrestre, mas sabemos como é a humanidade.



Os redentistas só apareceram muito depois da fundação da OTT. Esse grupo tinha o perfil de uma organização religiosa, e os membros eram crentes da fé trissolariana.



Sem dúvida, uma civilização que não pertencesse à humanidade seria algo muito atraente para as classes mais cultas, e não demorou para elas desenvolverem muitas ideias fantasiosas sobre essa civilização. A raça humana era uma espécie ingênua, e uma civilização alienígena avançada exercia uma atração quase irresistível. Em uma analogia grosseira: a civilização humana era como uma pessoa jovem e inexperiente que, caminhando sozinha pelo deserto do universo, descobriu a existência de um possível par romântico. Embora a pessoa não pudesse ver o rosto ou o corpo desse possível par, a consciência de que havia outra pessoa em algum outro lugar distante criava belas fantasias sobre o possível parceiro, e essas fantasias se disseminavam como um incêndio descontrolado. Aos poucos, as fantasias sobre a civilização distante foram ficando mais e mais complexas, e os redentistas acabaram desenvolvendo um sentimento espiritual em relação aos trissolarianos. Alfa Centauro se tornou o monte Olimpo do espaço, a morada dos deuses; e assim surgiu a religião trissolariana — que não tinha absolutamente nada a ver com religiões de Trissolaris. Ao contrário de outras religiões humanas, os redentistas idolatravam algo que tinha existência concreta. E, ao contrário de outras religiões humanas, o Senhor é que enfrentava uma crise, e o ônus da salvação recaía sobre os ombros do crente.



A principal via de difusão da cultura trissolariana na sociedade era o jogo Três Corpos. A OTT investiu uma quantidade imensa de recursos para desenvolver esse software colossal. Eram dois os objetivos iniciais: pregar a religião trissolariana e estender os tentáculos das classes mais cultas da OTT para as camadas sociais inferiores, para recrutar membros mais jovens da classe média e das classes mais baixas.



O jogo explicava a cultura e a história de Trissolaris através de uma fachada que extraía elementos da história da Terra e da sociedade humana, facilitando a compreensão dos iniciantes. Quando o jogador tivesse avançado até certo nível e começado a admirar a civilização trissolariana, a OTT entrava em contato, examinava as inclinações do jogador e, por fim, recrutava aqueles que fossem aprovados para ingressar na organização. Mas Três Corpos não fez muito sucesso nem virou muito popular, porque o jogo exigia conhecimento prévio e raciocínio profundo, e a maioria dos jogadores jovens não tinha paciência nem capacidade para descobrir a verdade chocante por trás da superfície aparentemente comum. O jogo continuava atraindo sobretudo intelectuais.



Como a maior parte dos que se tornaram redentistas conheceu a civilização trissolariana com o Três Corpos, o jogo era considerado o berço desse grupo.



Embora os redentistas nutrissem um sentimento de espiritualidade em relação à civilização trissolariana, não eram tão extremos como os adventistas quanto à civilização humana. A meta definitiva dos integrantes era salvar o Senhor. Para que o Senhor pudesse continuar existindo, estavam dispostos a sacrificar o mundo humano até certo ponto. Mas a maioria acreditava que a solução ideal seria descobrir um jeito de permitir que o Senhor continuasse no sistema estelar de Trissolaris e não invadisse a Terra. Ingênuos, acreditavam que seria possível conquistar esse objetivo com a solução do problema dos três corpos, salvando assim tanto Trissolaris quanto a Terra. Na verdade, essa noção talvez não fosse tão ingênua. A própria civilização de Trissolaris havia pensado assim por muitas eras. A busca da solução para o problema dos três corpos era um tema que havia percorrido centenas de ciclos da civilização trissolariana. A maioria dos redentistas com algum conhecimento avançado de matemática e física tinha tentado estudar o problema dos três corpos e, mesmo esbarrando na formulação de um problema sem solução, não desistia, porque a busca pela solução do problema se tornara um ritual religioso da sua própria fé. Embora muitos físicos e matemáticos de primeira linha fizessem parte dos redentistas, os estudos na área nunca alcançaram um resultado significativo. Para isso, foi preciso que entrasse em cena alguém como Wei Cheng, um prodígio que não possuía nenhum vínculo com a OTT ou com a fé trissolariana: os redentistas depositaram muita esperança em sua descoberta ocasional.



Os adventistas e os redentistas viviam em conflito. Os adventistas acreditavam que os redentistas eram a maior ameaça à OTT, o que não era algo completamente despropositado: foi só graças a alguns redentistas com certa noção de responsabilidade que os governos mundiais aos poucos foram começando a entender a impressionante história dos rebeldes da OTT. As duas facções controlavam contingentes mais ou menos equivalentes na organização, e as forças paramilitares de cada campo haviam se desenvolvido a ponto de deflagrar uma guerra civil. Ye Wenjie exerceu sua autoridade e reputação para tentar estabelecer uma ponte entre os dois lados, mas os resultados nunca foram satisfatórios.

À medida que o movimento da OTT se desenvolvia, surgiu uma terceira facção: os sobreviventes. Após a confirmação da frota invasora alienígena, a vontade de sobreviver à guerra iminente se tornou um desejo perfeitamente natural. Claro, essa guerra só aconteceria dali a quatrocentos e cinquenta anos e não afetaria a existência dos seres humanos na atualidade, mas muitos tinham a esperança de que, se a humanidade realmente perdesse, pelo menos seus descendentes dali a quatro séculos e meio poderiam sobreviver. Não havia dúvida de que servir aos invasores trissolarianos seria de grande ajuda para isso. Na comparação com as outras duas facções, os sobreviventes tendiam a pertencer às camadas sociais inferiores, e a maioria era do Oriente, sobretudo da China. Embora ainda fossem poucos, a facção estava crescendo rapidamente. Conforme a cultura trissolariana se difundisse, os sobreviventes viriam a se tornar uma força que não podia ser ignorada.

Em escalas diversas, a alienação dos membros da OTT resultava dos defeitos da civilização humana propriamente dita, dos anseios e do fascínio por uma civilização mais avançada, e de um forte desejo de preservação dos descendentes na guerra definitiva. Essas três poderosas motivações impeliam o crescimento acelerado do movimento da OTT.

A essa altura, a civilização extraterrestre ainda estava nas profundezas do espaço, a mais de quatro anos-luz de distância, separada do mundo humano por uma longa jornada de quatro séculos e meio. A única coisa que eles haviam enviado à Terra era uma transmissão de rádio.

E, por ela, a teoria do “contato como símbolo” de Bill Mathers obteve uma confirmação perfeita e preocupante.







30. DOIS PRÓTONS





INVESTIGADOR: Agora vamos começar a investigação de hoje. Esperamos que a senhora volte a cooperar, assim como na outra vez.



YE WENJIE: Vocês já sabem tudo o que eu sei. Na verdade, agora tem muita coisa que eu gostaria de perguntar para vocês.



INVESTIGADOR: Acho que a senhora não contou tudo. Em primeiro lugar, gostaríamos de saber o seguinte: qual era o conteúdo das mensagens que Trissolaris enviou à Terra que foram interceptadas e retidas pelos adventistas?



YE: Não sei dizer. A facção deles é muito fechada. Só sei que eles não passaram todas as mensagens.



INVESTIGADOR: Mudando de assunto. Depois que os adventistas monopolizaram as comunicações com Trissolaris, a senhora construiu uma terceira Base Costa Vermelha?

YE: Era um plano meu. Mas só construímos um receptor, e aí a construção foi interrompida. O equipamento e a base foram desmontados.



INVESTIGADOR: Por quê?



YE: Porque não havia mais nenhuma mensagem de Alfa Centauro. Não havia nada em nenhuma frequência. Acho que vocês já confirmaram isso.



INVESTIGADOR: Já. Em outras palavras, pelo menos nos últimos quatro anos, Trissolaris decidiu interromper toda comunicação com a Terra, o que torna as mensagens interceptadas pelos adventistas ainda mais importantes.



YE: É verdade. Mas realmente não sei mais nada sobre isso.



INVESTIGADOR (hesita por alguns segundos): Então vamos passar para um assunto que a senhora conhece melhor. Mike Evans mentiu para a senhora, não foi?



YE: Dá para dizer que sim. Ele nunca me revelou seus anseios mais profundos, só sua noção de dever para com as outras espécies deste planeta. Eu não percebi que essa noção de dever havia exacerbado o ódio dele pela civilização humana a tal ponto que tivesse como objetivo final a destruição de toda a humanidade.



INVESTIGADOR: Vamos dar uma olhada na composição atual da OTT. Os adventistas querem destruir a humanidade com a ajuda de uma potência alienígena; os redentistas idolatram a civilização alienígena como se fosse uma divindade; os sobreviventes querem trair outros seres humanos para garantir a própria sobrevivência. Nada disso condiz com sua ideia original de usar a civilização alienígena para reformar a humanidade.



YE: Eu comecei o incêndio, mas não consegui controlar as chamas.





INVESTIGADOR: A senhora pretendia eliminar os adventistas da OTT e até começou a implementar o plano. Mas o Juízo Final é a base principal e o centro de comando dos adventistas, e Mike Evans e outros líderes da facção vivem lá. Por que vocês não atacam o navio de uma vez? Afinal, a maioria das forças paramilitares redentistas é leal à senhora, e vocês devem ter poder de fogo suficiente para afundar ou capturar o navio.



YE: Por causa das mensagens que eles interceptaram do Senhor. Essas mensagens estão armazenadas na Segunda Base Costa Vermelha, em algum computador a bordo do Juízo Final. Se atacássemos o navio, os adventistas apagariam todas as mensagens assim que percebessem a iminência da derrota. Como essas mensagens são importantes demais, não podemos correr o risco de perdê-las. Para os redentistas, perder essas mensagens seria o mesmo que os cristãos perderem a Bíblia ou os muçulmanos perderem o Alcorão. Acho que vocês estão com o mesmo problema. Os adventistas estão usando as mensagens do Senhor como um mecanismo de defesa, um verdadeiro refém, e é por isso que o Juízo Final ainda não foi atacado.



INVESTIGADOR: A senhora tem algum conselho para nos dar?



YE: Não.



INVESTIGADOR: A senhora também chama Trissolaris de “Senhor”. Isso significa que, assim como os redentistas, a senhora também nutre um sentimento religioso por Trissolaris? A senhora se tornou seguidora da fé trissolariana?



YE: Nem um pouco. É só por costume… Eu não quero mais falar nisso.



INVESTIGADOR: Vamos voltar para aquelas mensagens interceptadas. Talvez a senhora não saiba o conteúdo exato, mas deve ter escutado boatos sobre alguns detalhes.



YE: Boatos que provavelmente não têm nenhum fundamento.



INVESTIGADOR: Como por exemplo?



YE: …



INVESTIGADOR: A senhora acha que Trissolaris transferiu alguma tecnologia para os adventistas, uma tecnologia mais avançada do que o nível atual da humanidade?



YE: É improvável, porque essa tecnologia poderia cair na mão de vocês.



INVESTIGADOR: Só mais uma pergunta, e também a mais importante: até agora, Trissolaris enviou apenas ondas de rádio para a Terra?



YE: Isso é quase verdade.



INVESTIGADOR: Quase?



YE: A civilização trissolariana atual é capaz de viajar no espaço a um décimo da velocidade da luz. Esse salto tecnológico aconteceu há algumas décadas, se usarmos a escala de anos terrestres. Antes disso, a velocidade máxima que alcançavam girava em torno de um milésimo da velocidade da luz. As sondas minúsculas que eles enviaram para a Terra ainda não completaram nem um centésimo do percurso até aqui.



INVESTIGADOR: Então tenho uma pergunta. Se a Frota Trissolariana que foi lançada é capaz de viajar a um décimo da velocidade da luz, ela deve levar apenas quarenta anos para chegar ao sistema solar. Nesse caso, por que a senhora diz que eles vão levar mais de quatrocentos anos? YE: A questão é que a Frota Interestelar Trissolariana é composta de naves espaciais





incrivelmente imensas. A aceleração é um processo lento. Um décimo da velocidade da luz é só a velocidade máxima, mas eles não podem viajar a essa velocidade por muito tempo antes de desacelerar para chegar à Terra. Além do mais, a propulsão das naves trissolarianas é feita por aniquilação de matéria e antimatéria. Na frente de cada nave tem um grande campo magnético, em forma de funil, que coleta partículas de antimatéria do espaço. Como é um processo lento, só depois de muito tempo é que se reúne antimatéria suficiente para permitir que a nave seja acelerada por um período curto. Desse modo, a aceleração da frota acontece aos saltos, entremeados com longos intervalos de inércia para coletar combustível. É por isso que, para chegar ao sistema solar, a Frota Trissolariana vai levar dez vezes mais tempo do que uma sonda pequena.



INVESTIGADOR: Então o que a senhora quis dizer com “quase” agora há pouco?



YE: Estamos falando de velocidades de viagem espacial em determinado contexto. Fora desse contexto, até os atrasados seres humanos são capazes de acelerar objetos a velocidades próximas à da luz.



INVESTIGADOR (uma pausa): Por “contexto”, a senhora se refere à escala macro? Na escala micro, os humanos já conseguem usar aceleradores de partículas de alta energia para impulsionar partículas subatômicas quase até a velocidade da luz. Essas partículas são os “objetos” a que a senhora se refere, correto?



YE: Você é muito inteligente.



INVESTIGADOR (aponta para o ponto no ouvido): Os maiores cientistas do mundo estão junto comigo.



YE: Sim, eu me referia às partículas subatômicas. Seis anos atrás, no distante sistema estelar de Trissolaris, os trissolarianos aceleraram dois núcleos de hidrogênio até quase a velocidade da luz e os dispararam para o sistema solar. Esses dois núcleos de hidrogênio, ou prótons, chegaram ao sistema solar há dois anos, e depois à Terra.



INVESTIGADOR: Dois prótons? Eles só mandaram dois prótons? Isso não é quase nada.



YE (ri): Você disse “quase”. Esse é o limite do poder de Trissolaris. Eles só conseguem acelerar algo do tamanho de um próton até uma velocidade próxima à da luz. Então, a quatro anos-luz de distância daqui, eles só conseguem enviar dois prótons.



INVESTIGADOR: Em uma escala macroscópica, dois prótons não são nada. Até um cílio em uma bactéria contém bilhões de prótons. De que adianta esses dois prótons?



YE: São uma trava.



INVESTIGADOR: Uma trava? O que eles travam?



YE: Eles estão bloqueando o progresso da ciência humana. Graças à existência desses dois prótons, a humanidade será incapaz de produzir qualquer descoberta científica relevante nos próximos quatro séculos e meio, até a chegada da Frota Trissolariana. Certa vez, Evans disse que o dia da chegada desses dois prótons foi também o dia do fim da ciência humana.

INVESTIGADOR: Isso… é fantástico demais. Como é possível?



YE: Não sei. Realmente não sei. Pela perspectiva da civilização trissolariana, provavelmente somos apenas uns selvagens primitivos. Talvez sejamos meros insetos.





Já era quase meia-noite quando Wang Miao e Ding Yi saíram do Centro de Comando em Batalha. Graças à participação de Wang no caso e a ligação de Ding Yi com a filha de Ye, os dois haviam sido convidados a ouvir o interrogatório.



— Você acredita no que Ye Wenjie disse? — perguntou Wang.



— E você?



— É verdade que aconteceram muitas coisas incríveis ultimamente. Agora, dois prótons capazes de bloquear o progresso da ciência humana? Parece…

— Vamos nos concentrar em uma questão de cada vez. Os trissolarianos conseguiram disparar dois prótons na direção da Terra a quatro anos-luz de distância, e os dois acertaram o alvo! A precisão é incrível! Existem vários obstáculos no caminho até aqui. Poeira interestelar, só para citar um exemplo. Sem falar que tanto o sistema solar quanto a Terra estão em movimento. A precisão teria que ser maior do que se quiséssemos atirar daqui e acertar um mosquito em Plutão.

É difícil imaginar um franco-atirador assim.



— O que você acha que isso significa?



— Não sei. Como é que você acha que são as partículas subatômicas como nêutrons e prótons?

— Devem parecer um ponto, mas um ponto com uma estrutura interna.



— Por sorte, a imagem na minha cabeça é mais realista que a sua. — Ding jogou fora a guimba do cigarro enquanto falava. — O que você acha que aquilo é? — E apontou para a guimba.



— Um filtro de cigarro.



— Ótimo. Olhando para aquele negócio minúsculo de longe, como você descreveria?



— É praticamente um ponto.



— Certo. — Ding pegou de volta a guimba. Diante dos olhos de Wang, ele rasgou o envoltório e mostrou o material esponjoso no interior do filtro. Wang sentiu o cheiro de alcatrão queimado. Ding continuou: — Olhe, se você espalhar essa coisinha, a área da superfície adsorvente pode ser tão grande quanto uma sala de estar. — Ele jogou o filtro fora. — Você fuma cachimbo?



— Já não fumo mais nada.



— Cachimbos usam um tipo de filtro mais avançado. Dá para comprar um por três yuans. Tem mais ou menos o mesmo diâmetro dos filtros de cigarro, só que é mais comprido: um tubinho de papel cheio de carvão ativado. Se você tirar todo o carvão de dentro, ele parece um punhadinho de partículas pretas, como cocô de rato. Mas, considerando o total, a superfície adsorvente formada pelos buracos minúsculos no meio é tão grande quanto uma quadra de tênis. Por isso o carvão ativado é tão adsorvente.

— O que você está querendo dizer? — perguntou Wang, prestando muita atenção.



— A esponja ou o carvão ativado dentro de um filtro tem três dimensões. Só que a superfície adsorvente é bidimensional. Por isso, dá para ver que uma estrutura minúscula com muitas dimensões pode conter uma estrutura imensa com poucas dimensões. Mas, na escola macroscópica, esse é mais ou menos o limite da capacidade que um espaço com muitas





dimensões tem de conter um espaço com poucas dimensões. Como Deus era mesquinho, na hora do Big Bang, Ele só deu ao mundo macroscópico três dimensões espaciais, mais a dimensão do tempo. Mas isso não significa que não existam dimensões superiores. Existem até sete dimensões a mais na escala micro ou, para ser mais exato, no universo quântico. E, somadas às quatro dimensões da escala macro, as partículas elementares existem em um espaço-tempo com onze dimensões.



— E daí?



— Só quero destacar o seguinte: no universo, um marco importante do avanço tecnológico de uma civilização é a capacidade de controlar e utilizar as dimensões da escala micro. Utilizar partículas elementares sem tirar proveito das dimensões da escala micro é algo que nossos ancestrais pelados e cabeludos já faziam quando acendiam uma lareira dentro da caverna. Controlar reações químicas é só um jeito de manipular micropartículas sem levar em conta as dimensões da escala micro. Claro, esse controle também progrediu do nível bruto para o avançado: fogueiras, motores a vapor e depois geradores. Agora, a capacidade dos seres humanos de manipular micropartículas em uma escala macro chegou a um limite: temos computadores e nanomateriais. Mas tudo isso é possível sem termos acesso às várias dimensões da escala micro. Pelo ponto de vista de uma civilização mais avançada no universo, em essência, fogueiras, computadores e nanomateriais não são diferentes. Todos fazem parte de um mesmo nível. É por isso também que eles ainda acham que os seres humanos são meros insetos. Infelizmente, acho que eles têm razão.

— Você poderia ser mais específico? O que isso tudo tem a ver com aqueles dois prótons? Afinal, o que os dois prótons que chegaram à Terra podem fazer? É como o investigador disse: um único cílio de uma bactéria pode conter bilhões de prótons. Mesmo se esses dois prótons se transformassem em energia pura na ponta do meu dedo, eu sentiria no máximo uma alfinetada.

— Você não sentiria nada. Provavelmente nem a bactéria sentiria nada se eles se transformassem em energia nela.

— Então o que você está tentando dizer?



— Nada. Não sei de nada. O que é que um inseto sabe?



— Mas você é um físico entre insetos. Sabe mais do que eu. Pelo menos não ficou completamente confuso quando soube desses prótons. Por favor, diga. Senão, não vou conseguir dormir hoje.



— Se eu disser mais, você realmente não vai conseguir dormir. Esqueça. De que adianta se preocupar? Nós deveríamos aprender a ter uma mentalidade filosófica como Wei Cheng e Shi Qiang. Fazer o melhor possível dentro do que está ao nosso alcance. Vamos beber e depois voltar para casa e dormir como bons insetos.







31. OPERAÇÃO GUZHENG






— Não se preocupe — disse Shi Qiang para Wang, sentando-se ao lado dele na mesa de reuniões. — Não estou mais radioativo. Nesses últimos dias fui lavado e revirado como um saco de farinha. Eles acharam que você não precisava comparecer a esta reunião, mas eu insisti. Hehe, aposto que nós dois vamos ser importantes agora.



Enquanto falava, Da Shi pegou uma ponta de charuto no cinzeiro, acendeu e deu uma longa tragada. Fez um gesto com a cabeça e, relaxado, soprou lentamente a fumaça no rosto das pessoas que estavam do outro lado da mesa. Uma delas era o dono do charuto, o coronel Stanton, do Corpo de Fuzileiros Navais dos Estados Unidos. Ele encarou Da Shi cheio de desprezo.

Havia muito mais oficiais militares estrangeiros naquela reunião do que na anterior, todos fardados. Pela primeira vez na história da humanidade, todas as Forças Armadas do mundo enfrentavam o mesmo inimigo.



— Camaradas — disse o general Chang —, todos nesta reunião têm o mesmo conhecimento básico da situação. Ou, como Da Shi aqui diria, temos paridade informacional. A guerra entre os invasores alienígenas e a humanidade já começou. Nossos descendentes só enfrentarão os trissolarianos daqui a quatro séculos e meio. Por enquanto, nossos oponentes ainda são humanos. Agora, em essência, esses traidores da raça humana também podem ser considerados inimigos que não fazem parte da nossa civilização. Nunca enfrentamos um inimigo assim. O próximo objetivo está muito claro: precisamos capturar as mensagens interceptadas de Trissolaris, que estão armazenadas no Juízo Final. Essas mensagens podem ter grande importância para a nossa sobrevivência.



“Ainda não demos nenhum passo capaz de levantar suspeitas na tripulação do Juízo Final. O navio continua navegando livremente pelo Atlântico e já enviou à Autoridade do canal do Panamá seus planos para usar o canal daqui a quatro dias. É uma excelente oportunidade para nós e, dependendo do desenrolar da situação, pode ser que nunca tenhamos outra. Neste instante, todos os Centros de Comando em Batalha do mundo estão preparando planos operacionais, e a Central vai selecionar um daqui a dez horas e iniciar a implementação. O propósito desta reunião é discutir possíveis planos de operação e transmitir à Central até três de nossas melhores sugestões. O tempo urge, e precisamos trabalhar com eficiência.

“Considerem que qualquer plano deve garantir uma coisa: a obtenção das mensagens trissolarianas. O Juízo Final foi adaptado a partir de um petroleiro antigo, e tanto a superestrutura quanto o interior passaram por amplas reformas para abrigar estruturas complexas, como cômodos e corredores novos. É possível que até a tripulação precise de mapas para chegar a





partes pouco usadas. Nós, evidentemente, sabemos ainda menos da estrutura do navio. Neste instante, não sabemos nem da localização do centro de computação no Juízo Final, muito menos se as mensagens trissolarianas estão armazenadas em servidores no centro de computação ou quantas cópias existem. Só conseguiremos alcançar nosso objetivo se capturarmos e controlarmos completamente o Juízo Final.



“A parte mais difícil vai ser impedir que o inimigo apague os dados de Trissolaris durante nossa ofensiva, o que seria bem fácil para eles. O inimigo não usaria nenhum método convencional para apagar os dados durante o ataque, porque não é complicado recuperar informações com tecnologias conhecidas. Agora, se eles esvaziarem um cartucho de munição no disco rígido do servidor ou outra mídia de armazenamento, algo que só levaria uns dez segundos, será o fim para nós. Por isso precisamos incapacitar todos os inimigos que estiverem perto do equipamento até dez segundos após a operação ter sido detectada. Como não sabemos a localização exata dos dados nem a quantidade de cópias, precisamos eliminar todos os inimigos no Juízo Final em muito pouco tempo, antes que o alvo seja alertado. Paralelamente, não podemos causar danos excessivos às instalações internas, sobretudo aos computadores. Resumindo: é uma tarefa muito difícil e há quem considere impossível.”



— Acreditamos que a única chance de sucesso seja a infiltração de espiões no Juízo Final — disse um oficial das Forças de Autodefesa do Japão. — Se eles descobrirem onde estão armazenadas as informações de Trissolaris, podem controlar o perímetro ou transferir os equipamentos para outro lugar pouco antes de nossa operação.



— A função de reconhecimento e monitoração do Juízo Final sempre foi responsabilidade da inteligência militar da Otan e da CIA — disse alguém. — Temos esses espiões?

— Não — respondeu o oficial da Otan.



— Então qualquer conversa aqui não passa de palhaçada — disse Da Shi.



— Como o objetivo é eliminar todos os indivíduos dentro de uma estrutura fechada sem danificar os equipamentos — disse o coronel Stanton —, nossa primeira ideia foi usar uma arma de relâmpagos globulares.



Ding Yi balançou a cabeça.



— A existência desse tipo de arma já é de conhecimento geral. Não sabemos se o navio foi equipado com blindagem magnética, que daria proteção contra relâmpagos globulares. Mesmo se não tiver sido, uma arma dessas pode até matar todas as pessoas a bordo, mas não ao mesmo tempo. Além disso, depois que o relâmpago globular entrar no navio, pode flutuar no ar por algum tempo antes de liberar energia. Esse tempo de espera pode levar de doze segundos a até um minuto ou mais. Os tripulantes terão tempo de perceber o ataque e destruirão os dados.

— E uma bomba de nêutrons? — perguntou o coronel Stanton.



— Coronel, o senhor deveria saber que isso não vai funcionar — disse um oficial russo. — A radiação de uma bomba de nêutrons não mata na hora. Após um ataque com uma bomba de nêutrons, o inimigo terá bastante tempo para fazer uma reunião igual a esta nossa.

— Chegamos a cogitar gases neurotóxicos — disse um oficial da Otan. — Mas, como o lançamento e a dispersão pelo navio levariam tempo, também é um método que não atende aos





requisitos do general Chang.



— Então as únicas opções que restam são bombas de concussão e ondas infrassônicas — disse o coronel Stanton. Os outros esperaram ele concluir o raciocínio, mas o coronel não falou mais nada.



— Eu uso bombas de concussão com a polícia — disse Da Shi —, mas elas são brinquedos. Até conseguem apagar pessoas dentro de um edifício, mas só são úteis em um ou dois cômodos. Vocês têm alguma bomba de concussão grande o bastante para atordoar um petroleiro todo cheio de gente?



Stanton balançou a cabeça.



— Não. Mesmo se tivéssemos, um explosivo desse tamanho com certeza danificaria os equipamentos dentro do navio.

— E armas infrassônicas? — perguntou alguém.



— Ainda estão em fase experimental e não podem ser usadas em situação de combate real. Além do mais, o navio é muito grande. Com o nível de potência dos protótipos experimentais existentes, o máximo que um ataque total ao Juízo Final faria é deixar as pessoas a bordo enjoadas e tontas.



— Rá! — Da Shi apagou o charuto, que tinha ficado do tamanho de um amendoim. — Eu avisei que qualquer conversa aqui não passava de palhaçada. Já estamos discutindo isso há algum tempo. Vamos lembrar o que o general disse: ‘O tempo urge!’. — Ele lançou um sorrisinho para a intérprete, uma primeiro-tenente que não parecia muito feliz com o linguajar.

— Não é fácil traduzir, né, camarada? Pode passar só a ideia geral.



Mas Stanton pareceu entender o que ele tinha falado. Apontou para Shi Qiang com um charuto novo, que havia acabado de pegar.



— Quem é que esse policial pensa que é para falar conosco desse jeito?



— Quem você pensa que é? — perguntou Da Shi.



— O coronel Stanton tem muita experiência com operações especiais — disse um oficial da Otan. — Ele participou de todas as grandes operações militares desde a Guerra do Vietnã.

— Então me deixem dizer quem eu sou. Há mais de trinta anos, meu grupo de reconhecimento conseguiu se infiltrar por dezenas de quilômetros de território vietcongue e capturar uma hidrelétrica muito vigiada. Impedimos o plano dos vietcongues de usar explosivos para demolir a barragem, que teria inundado a rota de ataque do nosso Exército. É isso o que eu sou. Derrotei um inimigo que já derrotou vocês.

— Já chega! — O general Chang bateu na mesa. — Não vamos ficar falando de questões irrelevantes. Se você tem um plano, diga qual é.

— Acho que não precisamos perder tempo com esse policial — disse o coronel Stanton, cheio de desprezo, acendendo o charuto.

Sem esperar a tradução, Da Shi se levantou de repente.



— “Po-li-si-au”… já ouvi essa palavra duas vezes. Qual é? Por acaso você despreza a polícia? Se querem falar de jogar umas bombas e arrebentar aquele navio todo, sim, vocês militares podem se considerar especialistas. Agora, se querem recuperar alguma coisa sem causar danos, vocês podem ter todas as estrelas do mundo nos ombros e nunca vão ser tão bons quanto um





ladrão. Para esse tipo de coisa, vocês precisam de criatividade. CRI. A. TI. VI. DA. DE! Vocês nunca vão ser tão bons nisso quanto os bandidos, os mestres da criatividade.



“Sabem o quanto eles são bons? Uma vez lidei com um assalto em que os bandidos conseguiram roubar um vagão de um trem em movimento. Os caras religaram os vagões que estavam antes e depois daquele que eles queriam, e aí o trem chegou ao destino sem que ninguém percebesse nada. E eles só usaram um pedaço de cabo de aço e alguns ganchos. Esses são os verdadeiros mestres das operações especiais. E alguém como eu, um policial que brinca de gato e rato com esses especialistas há mais de uma década, aprendeu e treinou muito com eles.”



— Fale logo qual é o seu plano — disse o general Chang. — Caso contrário, cale a boca!



— Tem tanta gente importante aqui que achei que eu não podia falar nada. E também fiquei com medo de que o senhor, general, dissesse que eu estava sendo grosseiro de novo.

— Você já é a própria definição de grosseria. Chega! Fale qual é esse seu plano criativo.



Da Shi pegou uma caneta e traçou duas curvas paralelas na mesa.



— Este é o canal. — Ele colocou o cinzeiro entre as duas linhas. — Este é o Juízo Final. — Depois, ele esticou o braço por cima da mesa e pegou o charuto recém-aceso da boca do coronel Stanton.



— Não aguento mais esse idiota! — berrou o coronel, de pé.



— Da Shi, saia daqui! — disse o general Chang.



— Só um minuto. Vou acabar logo. — Da Shi estendeu a mão para o coronel Stanton.



— O que você quer? — perguntou o coronel, confuso.



— Preciso de outro.



Stanton hesitou por um segundo, pegou mais um charuto de um belo estojo de madeira e entregou para Da Shi. Ele apoiou a ponta acesa do primeiro charuto na mesa e o apertou para deixá-lo em pé na margem do canal do Panamá que havia desenhado. Em seguida, achatou a ponta do outro charuto e o equilibrou no outro lado do canal.



— Montamos duas colunas nas margens do canal e, entre elas, estendemos vários filamentos finos e paralelos, a intervalos de cerca de meio metro. Os filamentos devem ser feitos do nanomaterial chamado lâmina voadora, criado pelo professor Wang. É um nome muito adequado para este caso.



Quando acabou de falar, Da Shi se levantou e esperou alguns segundos. Depois, levantou as mãos, disse “É isso” para uma plateia atordoada, deu as costas e saiu.

O ar parecia ter congelado. Todos os presentes ficaram imóveis como estátuas. Até o zumbido dos computadores ao redor parecia mais cheio de cautela.

Depois de muito tempo, alguém rompeu o silêncio, com timidez.



— Professor Wang, a “lâmina voadora” é mesmo um filamento?



— Com a técnica de construção molecular disponível atualmente, só conseguimos produzir na forma de filamento. Ela tem cerca de um centésimo da espessura de um fio de cabelo humano… O policial Shi confirmou essa informação comigo antes da reunião.

— Você tem uma quantidade suficiente do material?





— Qual é a largura do canal? E a altura do navio?



— O ponto mais estreito do canal tem cento e cinquenta metros de largura. O Juízo Final tem trinta metros de altura, com um calado de cerca de oito metros.

Wang olhou para os charutos na mesa e fez algumas contas de cabeça.



— Acho que tenho o bastante.



Outro longo silêncio. Todo mundo estava tentando se recuperar do baque.



— E se o equipamento que estiver armazenando os dados de Trissolaris, como discos rígidos ou CDs, também forem cortados?

— Acho improvável.



— Mesmo se o material for cortado — disse um especialista em informática —, não tem problema. Os filamentos são extremamente afiados, e a superfície dos cortes será muito lisa. Considerando essa premissa, quer sejam discos rígidos, CDs ou circuitos integrados, poderíamos recuperar a maioria dos dados.



— Alguém tem uma ideia melhor? — Chang olhou para todo mundo em volta da mesa. Ninguém disse nada. — Muito bem. Então vamos nos concentrar nisso e definir os detalhes.

O coronel Stanton, que ficou esse tempo todo quieto, se levantou.



— Vou pedir para o policial Shi voltar.



O general Chang fez um gesto para que ele se sentasse de novo e gritou:



— Da Shi!



Da Shi voltou, sorrindo para todo mundo, e pegou os charutos de cima da mesa. O que tinha sido aceso ele colocou na boca e o outro foi para dentro do bolso.



— Quando o Juízo Final passar — perguntou alguém —, essas duas colunas vão aguentar a força aplicada contra os filamentos da lâmina voadora? Talvez as colunas sejam cortadas antes.

— Isso é fácil de resolver — disse Wang. — Temos uma pequena quantidade de material da lâmina voadora em forma de chapa. Podemos usá-la para reforçar as partes da coluna em que os filamentos estiverem amarrados.



Depois disso, a conversa ficou reservada sobretudo aos oficiais da Marinha e aos especialistas em navegação.

— O Juízo Final está no limite da tonelagem para poder passar pelo canal do Panamá. O calado é grande, então precisamos pensar em instalar filamentos abaixo da linha-d’água.

— Vai ser muito difícil. Se não houver tempo suficiente, acho que não deveríamos nos preocupar com isso, até porque as partes do navio que ficam abaixo da linha-d’água costumam ser usadas para os motores, o combustível e o lastro, o que gera uma quantidade muito grande de barulho, vibrações e interferência. Essas condições são ruins demais para centros de computação e outras instalações semelhantes. Agora, para as partes acima da água, uma rede de nanofilamentos mais densa vai render um resultado melhor.



— Então é melhor montar a armadilha em uma das eclusas ao longo do canal. O Juízo Final foi construído de acordo com as especificações da Panamax, o bastante para ocupar as eclusas de trinta e dois metros. Então só precisaríamos de filamentos de lâmina voadora com trinta e dois metros de comprimento. Assim também vai ser mais fácil instalar as colunas e passar os filamentos entre elas, em especial nas partes debaixo d’água.





— Não. A situação nas eclusas é imprevisível demais. Além disso, um navio dentro da eclusa precisa ser puxado para a frente por quatro “mulas”, locomotivas elétricas em trilhos. Elas avançam devagar, e o período nas eclusas também vai ser um momento de alerta máximo da tripulação. É mais provável que uma tentativa de cortar o navio nessa hora seja descoberta.

— E a ponte das Américas, logo antes das eclusas de Miraflores? Os contrafortes nas duas extremidades da ponte podem servir de coluna para os filamentos.

— Não. A distância entre os contrafortes é grande demais. Não temos material suficiente de lâmina voadora.

— Então está decidido: a operação terá que ser feita no trecho mais estreito no passo Culebra, com cento e cinquenta metros de largura. Se incluirmos uma margem para as colunas… digamos que são cento e setenta metros.



— Se o plano é esse — disse Wang —, então a menor distância entre os filamentos vai ter que ser de cinquenta centímetros. Não tenho material suficiente para uma rede mais densa.

— Em outras palavras, precisamos garantir que o navio passe durante o dia — comentou Da Shi, soltando mais uma nuvem de fumaça.

— Por quê?



— À noite a tripulação vai estar dormindo, ou seja, todo mundo estará deitado. Cinquenta centímetros entre os filamentos é um espaço muito grande. Só que, durante o dia, mesmo se os tripulantes estiverem sentados ou agachados, a distância será suficiente.

Soaram algumas risadas. Com tanto estresse, as pessoas ali relaxaram um pouco diante do cheiro de sangue.

— Você é mesmo um demônio — disse uma representante da ONU para Da Shi.



— Algum inocente vai se machucar? — perguntou Wang, com a voz baixa.



— Quando os navios passam pelas eclusas — respondeu um oficial da Marinha —, mais de uma dúzia de amarradores sobem a bordo, mas todos descem depois que o navio sai. O prático do canal do Panamá terá que acompanhar o navio por todo o trajeto de oitenta e dois quilômetros, então ele precisará ser sacrificado.



— E parte da tripulação do Juízo Final talvez não saiba qual é o verdadeiro propósito do navio



— disse um agente da CIA.



— Professor — disse o general Chang —, não se preocupe com isso. As informações que precisamos obter têm relação direta com a própria sobrevivência da humanidade. Não temos escolha.



Quando a reunião acabou, o coronel Stanton empurrou a bela caixa de charutos para Shi Qiang.

— Capitão, é o melhor que Havana tem a oferecer. Todos seus.



Quatro dias depois, passo Culebra, canal do Panamá



Para Wang, nem dava para dizer que aquele era outro país. Ele sabia que, não muito longe para o oeste, ficava o belo lago Gatún. No leste estavam a magnífica ponte das Américas e a Cidade do Panamá. Mas ele não tinha conseguido visitar nenhum dos três.

Wang havia chegado dois dias antes, em um voo direto da China ao Aeroporto Internacional





Tocument, perto da Cidade do Panamá, e pegou um helicóptero até ali. A paisagem era muito comum: as obras de ampliação do canal fizeram com que a floresta tropical nas duas margens se escasseasse bastante, revelando grandes trechos de terra amarela. Wang achou que a cor tinha algo de familiar. O canal não parecia nada de mais, provavelmente porque era muito estreito naquele ponto, mas cem mil pessoas com enxadas haviam cavado aquela parte do canal no século anterior.



Wang e o coronel Stanton estavam sentados em espreguiçadeiras debaixo de um toldo no meio da margem. Com camisa colorida folgada e um chapéu-panamá caído ao lado do corpo, os dois pareciam turistas.



Em cada uma das margens do canal abaixo via-se uma coluna de aço de vinte e quatro metros deitada no chão paralelamente à água. Cinquenta filamentos ultrafortes, com cento e sessenta metros de comprimento, haviam sido estendidos entre as colunas. Na margem leste, os filamentos estavam ligados a cabos de aço comum, para que fosse possível descê-los até o fundo do canal com a ajuda de pesos e permitir que outros navios passassem em segurança. Por sorte, o tráfego do canal não era tão movimentado quanto Wang havia imaginado: em média, apenas quarenta navios grandes por dia.



O codinome da operação era “Guzheng”, inspirado na semelhança entre aquela estrutura e a antiga cítara chinesa que tinha esse nome. Portanto, a rede de corte dos nanofilamentos foi chamada de “cítara”.



O Juízo Final tinha entrado no passo Culebra havia uma hora, vindo do lago Gatún.



Stanton perguntou a Wang se ele já havia visitado o Panamá. Wang disse que não.



— Eu vim aqui em 1989 — disse o coronel.



— Por causa daquela guerra?



— Sim, aquela foi uma das guerras que não me marcou. Só me lembro de estar na frente da embaixada do Vaticano enquanto tocavam “Nowhere to Run”, de Martha and the Vandellas, para Noriega, que estava entocado. Aquilo foi ideia minha, aliás.



No canal, um cruzeiro francês navegava lentamente. No convés de carpete verde, passageiros com roupas coloridas passeavam com tranquilidade.

— Relatório do Segundo Posto de Observação: não há mais nenhum navio na frente do alvo



— grunhiu o rádio de Stanton.



O coronel deu a ordem:



— Erguer a cítara.



Apareceram vários homens com capacete de segurança nas duas margens, como se fossem membros de uma equipe de manutenção. Wang se levantou, mas o coronel o fez se sentar de novo.



— Professor, não se preocupe. Eles sabem o que fazem.



Wang viu os homens na margem leste içarem depressa os cabos de aço e prenderem os nanofilamentos estirados à coluna. Depois, lentamente, as duas colunas foram levantadas nas articulações mecânicas. Para disfarçar, as duas colunas foram decoradas com alguns sinais de navegação e indicadores de profundidade. Os homens trabalharam com calma, como se estivessem fazendo apenas o mesmo trabalho tedioso de sempre. Wang observou o espaço entre





as colunas. Parecia não haver nada ali, mas a cítara mortal já estava posicionada.



— Alvo a quatro quilômetros da cítara — disse a voz no rádio.



Stanton deixou o rádio na espreguiçadeira e continuou a conversa com Wang.



— Quando vim ao Panamá pela segunda vez, em 1999, foi para a cerimônia de entrega do canal ao Panamá. Curiosamente, quando chegamos à sede, a bandeira americana já havia sumido. Dizem que o governo dos Estados Unidos tinha pedido para abaixarem a bandeira um dia antes para evitar o constrangimento de fazer isso na frente de uma multidão… Na época, eu achava que estava vendo a história acontecer. Mas agora tudo parece insignificante.

— Alvo a três quilômetros da cítara.



— Sim, insignificante — murmurou Wang. Ele não estava prestando nenhuma atenção em Stanton. O resto do mundo deixara de existir para ele. Seus olhos só viam o lugar onde o Juízo Final ia aparecer. O sol já havia parado de subir no Atlântico e começava a descer na direção do Pacífico. O canal brilhava com uma luminosidade dourada. A cítara mortal aguardava em silêncio ali perto. As duas colunas de aço eram escuras e não refletiam a luz do sol; pareciam ainda mais antigas que o canal no meio.



— Alvo a dois quilômetros da cítara.



Stanton parecia não ter escutado a voz no rádio.



— Depois que eu soube da frota alienígena vindo para a Terra, comecei a ter amnésia — continuou o coronel. — É muito estranho. Não consigo me lembrar de muitas coisas do passado. Não lembro os detalhes das guerras que vivi. Como eu disse, aquelas guerras todas parecem muito insignificantes. Depois de descobrir essa verdade, todo mundo se torna uma nova pessoa em termos espirituais e enxerga o mundo com outros olhos. Tenho pensado: digamos que dois mil anos atrás, quem sabe até antes, a humanidade tivesse descoberto que haveria uma frota alienígena invasora dali a alguns milhares de anos. Como será que a civilização humana seria hoje? Professor, você consegue imaginar?



— Ah, não… — respondeu Wang, distraído, com a cabeça em outro lugar.



— Alvo a um quilômetro e meio da cítara.



— Professor, acho que você vai ser o Gaillard desta nova era. Estamos esperando a construção de seu novo canal do Panamá. Sem dúvida, o elevador espacial é um canal: assim como o canal do Panamá liga dois oceanos, o elevador espacial ligará a Terra ao espaço.

Wang sabia que o coronel estava falando sem parar para ajudá-lo a suportar aquele momento difícil. Estava grato pela consideração, mas o falatório não ajudava.

— Alvo a um quilômetro da cítara.



O Juízo Final apareceu. Sob a luz do pôr do sol nas colinas a oeste, era uma silhueta escura sobre as ondas douradas do canal. O navio de sessenta mil toneladas era muito maior do que Wang havia imaginado. Foi como se outro morro tivesse sido inserido de repente no meio da paisagem. Wang sabia que o canal era capaz de comportar navios de até setenta mil toneladas, mas era estranho ver um navio daquele tamanho em uma passagem tão estreita. Com aquele volume todo, o canal parecia nem existir mais. O navio era como uma montanha que deslizasse pela terra sólida. Quando seus olhos se acostumaram à luz do sol, Wang percebeu que o casco do Juízo Final era totalmente preto, e a superestrutura, pintada toda de branco. A gigantesca antena





não estava visível. Dava para ouvir o rugido dos motores do navio, bem como o barulho de agitação das ondas que eram geradas pelo deslocamento da proa redonda e batiam nas margens do canal.



À medida que a distância entre o Juízo Final e a cítara mortal diminuía, Wang foi sentindo o coração e a respiração dispararem. Ele tinha vontade de sair correndo, mas se sentia tão fraco que não conseguia mais controlar o próprio corpo. De repente, foi dominado por um ódio profundo por Shi Qiang. Como é que aquele miserável pensou numa ideia dessas? Foi o que a representante da ONU disse, ele é um demônio! Mas a sensação passou. Se Da Shi estivesse ali a seu lado, Wang provavelmente se sentiria melhor. O coronel Stanton havia convidado Shi Qiang, mas o general Chang não deu permissão porque disse que Da Shi não podia sair de onde estava. Wang sentiu a mão do coronel nas costas.

— Professor, tudo vai passar.



O Juízo Final já estava diante deles, atravessando a cítara mortal. Assim que a proa passou pelo espaço entre as duas colunas de aço, o espaço que parecia vazio, Wang ficou tenso. Mas não aconteceu nada. O casco imenso do navio continuou avançando lentamente pelas duas colunas de aço. Quando metade do navio já estava do outro lado, Wang começou a achar que os nanofilamentos entre as colunas nem existiam.



Mas um pequeno sinal logo desfez sua dúvida. Ele percebeu uma antena fina bem no alto da superestrutura quebrar na base e cair.

Pouco depois, outro sinal indicou a presença dos nanofilamentos, um sinal que quase deixou Wang em estado de choque. No vasto convés do Juízo Final, só havia um homem perto da popa, lavando com uma mangueira os cabeços do navio. De onde estava, Wang viu tudo com clareza. No momento em que aquela parte do navio passou entre as colunas, a mangueira se partiu em duas não muito longe do homem e a água vazou. O corpo do homem ficou duro, e a pistola da mangueira caiu de sua mão. Ele continuou em pé por alguns segundos e, depois, desabou. Quando atingiu o convés, o corpo se dividiu em duas metades. A parte de cima tentou se arrastar pela poça de sangue cada vez maior, mas ele precisava usar dois braços que tinham virado cotocos ensanguentados. As mãos tinham sido decepadas.



Depois que a popa do navio terminou de passar pelas colunas, o Juízo Final continuou avançando na mesma velocidade, e tudo parecia normal. Mas Wang ouviu o motor começar a soar com um rangido estranho que depois virou um barulho caótico. Era como se alguém tivesse jogado uma chave de boca no rotor de um motor grande — não, muitas, muitas chaves. Wang sabia que isso tinha acontecido porque as partes móveis do motor haviam sido cortadas. Após um estrondo agudo, um grande pedaço de metal atravessou o casco e abriu um buraco na lateral da popa do Juízo Final. Um componente quebrado saiu pelo buraco e caiu, levantando grande quantidade de água. O objeto caiu rápido, mas Wang reconheceu que era um pedaço do eixo de manivelas do motor.



Uma nuvem densa de fumaça saiu do buraco. O Juízo Final, que tinha vindo pela margem da direita, começou a virar, deixando um rastro fumegante. Logo depois, ele atravessou o canal e bateu na margem esquerda. Wang observou enquanto a proa gigantesca se deformou ao colidir no barranco, rasgando a margem como se fosse água e lançando montes de terra para todos os





lados. Ao mesmo tempo, o Juízo Final começou a se desfazer em mais de quarenta fatias, cada uma com meio metro de espessura. As fatias mais perto do topo se deslocavam mais rápido que as da base, e o navio se espalhou como um baralho. À medida que as quarenta e poucas fatias deslizavam umas sobre as outras, o estrondo agudo parecia uma infinidade de unhas arranhando vidro.



Quando o barulho insuportável finalmente acabou, o Juízo Final estava espalhado na margem, e as fatias de cima tinham deslizado mais longe que as de baixo, como uma pilha de pratos na bandeja de um garçom desajeitado. As fatias pareciam suaves como tecido e logo se desmontaram em formas complexas que ninguém jamais diria que tinham feito parte de um navio.



Soldados saíram correndo pelo barranco até a margem. Wang ficou surpreso de ver a quantidade de homens escondidos. Uma frota de helicópteros, com o rugido dos rotores, veio pelo canal, cruzou a superfície agora coberta com uma camada iridescente de óleo, ficou pairando por cima dos destroços do Juízo Final e começou a despejar uma grande quantidade de espuma e pó anti-incêndio. Em pouco tempo, o incêndio foi controlado e, de outros três helicópteros, pessoas começaram a descer em cabos para dentro dos destroços.

O coronel Stanton já havia ido embora. Wang pegou o binóculo que ele havia deixado em cima do chapéu e, com as mãos trêmulas, observou o Juízo Final. A essa altura, os destroços já estavam quase cobertos de espuma e pó anti-incêndio, mas as extremidades de algumas das fatias continuavam visíveis. Wang reparou nas superfícies dos cortes, lisas como espelhos, refletindo com perfeição a luz flamejante do entardecer. Viu também uma mancha vermelha na superfície espelhada. Não sabia dizer se era sangue.



Três dias depois



INVESTIGADOR: A senhora compreende a civilização trissolariana?



YE WENJIE: Não. Só recebemos uma quantidade muito limitada de informação. Fora Mike Evans e os principais adventistas que interceptaram as mensagens, ninguém conhece em detalhes a civilização trissolariana.



INVESTIGADOR: Então por que vocês depositam tanta esperança, por que acham que essa civilização é capaz de transformar e aprimorar a sociedade humana?



YE: Se eles são capazes de atravessar a distância entre as estrelas para chegar ao nosso mundo, a ciência deve ter alcançado um nível muito avançado. Uma sociedade tão avançada cientificamente também deve ter conceitos morais superiores.

INVESTIGADOR: A senhora acha que essa sua conclusão é científica?



YE: …



INVESTIGADOR: Vou supor o seguinte: seu pai foi extremamente influenciado pela crença de seu avô de que apenas a ciência poderia salvar a China. E a senhora foi extremamente influenciada por seu pai.



YE (solta um leve suspiro): Não sei.



INVESTIGADOR: Já recuperamos todas as mensagens de Trissolaris interceptadas pelos adventistas.



YE: Ah… o que aconteceu com Evans?





INVESTIGADOR: Ele morreu durante a operação realizada para capturar o Juízo Final. A posição do corpo dele nos indicou os computadores que continham cópias das mensagens trissolarianas. Felizmente, estavam todas criptografadas com a mesma codificação autointerpretativa usada pela Costa Vermelha.



YE: Havia muita informação?



INVESTIGADOR: Sim, cerca de vinte e oito gigabytes.



YE: Impossível. A comunicação interestelar é muito pouco eficiente. Como pode ter sido transmitida uma quantidade tão grande de dados?



INVESTIGADOR: Também achamos isso no início. Mas a realidade era completamente diferente do que tínhamos imaginado — por mais estranha e fantástica que fosse nossa imaginação. O que acha disto? Por favor, leia este trecho da análise preliminar dos dados obtidos. A senhora verá a verdadeira civilização trissolariana, em comparação com suas belas fantasias.







32. TRISSOLARIS: O OUVINTE





Os dados de Trissolaris não continham nenhuma descrição da aparência biológica dos trissolarianos. Como os seres humanos demorariam ainda mais de quatrocentos anos para ver trissolarianos de fato, Ye só conseguia imaginá-los com uma forma humanoide ao ler as mensagens. Ela preencheu as lacunas com a própria imaginação.

O Posto de Escuta 1379 já existia havia mais de mil anos. Trissolaris possuía milhares de postos semelhantes, todos destinados a detectar possíveis sinais de vida inteligente no universo.

A princípio, cada posto tinha abrigado centenas de ouvintes, mas, com a evolução da tecnologia, só um trissolariano permanecia de plantão. A carreira de ouvinte era humilde. Como esses trissolarianos viviam em postos de escuta preservados a uma temperatura constante, com sistemas de apoio que garantiam a sobrevivência sem a necessidade de desidratação durante Eras Caóticas, eles também precisavam passar a vida inteira no ambiente restrito dessas acomodações pequenas. As Eras Estáveis proporcionavam muito menos alegrias aos ouvintes do que aos outros trissolarianos.



O ouvinte no Posto 1379 olhou para o mundo de Trissolaris pela janelinha minúscula. Era uma noite de Era Caótica. A lua gigante ainda não havia nascido, e a maioria da população continuava em hibernação desidratada. Até as plantas haviam se desidratado por instinto e se transformado em maços inertes de fibra ressecada caídos no chão. Debaixo das estrelas, o solo parecia uma chapa gigante de metal frio.



Aquele período era o mais solitário de todos. Nas profundezas do silêncio da meia-noite, o universo se revelava como uma vasta desolação para quem estivesse ouvindo. O que o ouvinte do Posto 1379 menos gostava de fazer era ver as ondas que se arrastavam vagarosamente na tela, um registro visual do ruído sem significado que o posto de escuta captava do espaço. Para ele, essa onda interminável era uma imagem abstrata do universo: uma extremidade ligada ao passado infinito, a outra, ao futuro infinito, e no meio apenas os altos e baixos do puro acaso — sem vida, sem padrão, picos e vales em alturas diferentes como se fossem grãos irregulares de areia, a curva toda como se fosse um deserto unidimensional em que todos os grãos estão alinhados em uma única fileira, solitária, desolada, infinita a ponto de ser intolerável. Dava para acompanhá-la para um lado ou para o outro, mas seria impossível chegar ao fim.



Porém, nesse dia, o ouvinte viu algo estranho com a forma de onda na tela. Até especialistas tinham dificuldade para identificar a olho nu se uma onda possuía alguma informação. Mas o ouvinte estava tão acostumado com o ruído do universo que conseguiu perceber algo a mais na onda que se deslocava diante de seus olhos. O sobe e desce da curva fina parecia ter uma alma. Ele tinha certeza de que aquele sinal de rádio fora modulado por alguma inteligência.

O ouvinte correu até outro terminal e conferiu a classificação que o computador emitia para a reconhecibilidade do sinal: Vermelho 10. Antes, nenhum outro sinal de rádio recebido pelo posto de escuta alcançara uma classificação de reconhecibilidade superior a Azul 2. Uma classificação Vermelho significava que havia mais de noventa por cento de chance de a transmissão conter alguma informação inteligente. Uma classificação Vermelho 10 indicava que a transmissão recebida continha um sistema de codificação autointerpretativo! O computador de decodificação começou a trabalhar com potência total.



Ainda embalado pela empolgação e pela confusão vertiginosa, o ouvinte olhou para a onda na tela. As informações continuavam chegando do universo pela antena. Graças à codificação autointerpretativa, o computador pôde traduzir em tempo real, e a mensagem começou a aparecer imediatamente.



O ouvinte abriu o documento resultante e, pela primeira vez, um trissolariano leu uma mensagem enviada de outro mundo.



Movidos pelas melhores intenções, desejamos estabelecer contato com outras sociedades civilizadas do universo.



Desejamos trabalhar junto com vocês para desenvolver uma vida melhor neste vasto universo.



Durante as duas horas trissolarianas seguintes, o ouvinte leu sobre a existência da Terra, o fato de que o planeta só tinha um sol e permanecia sempre em uma Era Estável, e soube que a civilização humana havia nascido em um paraíso de clima eternamente ameno.

A transmissão do sistema solar acabou. O computador de decodificação continuava rodando sem resultado. O posto de escuta tinha voltado a ouvir apenas o ruído do universo.

Mas o ouvinte tinha certeza de que o que ele havia acabado de presenciar não tinha sido um sonho. E ele sabia que os milhares de postos de escuta espalhados por Trissolaris também haviam recebido aquela mensagem, esperada por eras pela civilização trissolariana. Duzentos ciclos de civilização haviam rastejado por um túnel escuro, e finalmente havia surgido um único raio de luz.



O ouvinte releu a mensagem da Terra. Sua imaginação passeou pelo oceano azul que nunca se congelava, por florestas e campos verdejantes, pela luz agradável do sol e pelas carícias de uma brisa fresca. Que mundo lindo! O paraíso que nós imaginávamos existe de verdade!

O entusiasmo e a empolgação se dissiparam, e restou apenas uma sensação de perda e desolação. Em meio à grande solidão do passado, mais de uma vez o ouvinte havia se perguntado: Mesmo se um dia chegar alguma mensagem de uma civilização extratrissolariana, o que eu teria a ver com isso? Sua própria vida solitária e humilde não mudaria em nada.



Mas pelo menos isso pode pertencer a mim em sonhos… E o ouvinte se entregou ao sono. No ambiente rigoroso do planeta, a população de Trissolaris havia desenvolvido a habilidade de dormir sempre que quisesse. Um trissolariano era capaz de adormecer em questão de segundos.

Mas o sonho não foi como ele queria. Verdade que apareceu a Terra azul, mas sendo bombardeada por uma frota interestelar enorme: os lindos continentes da Terra queimavam, o oceano azul profundo fervia e evaporava…



O ouvinte acordou do pesadelo e viu a lua gigante, que havia acabado de nascer e lançava um fiapo de luar frio pela janelinha. Ele olhou para o solo congelado do lado de fora e repensou sua própria vida de solidão. Já vivera por seiscentas mil horas trissolarianas. A expectativa de vida em Trissolaris variava entre setecentas e oitocentas mil horas. Claro que a maioria dos trissolarianos perdia a capacidade de ser produtiva muito antes disso. Nesses casos, eles eram desidratados à força, e as fibras ressecadas, incineradas. Trissolaris não tinha lugar para encostados.



Só que agora o ouvinte via outra perspectiva. Seria um erro dizer que o recebimento da mensagem extratrissolariana não mudaria sua vida em nada. Após a confirmação, Trissolaris sem dúvida reduziria a quantidade de postos de escuta, e o dele, ultrapassado, com certeza seria um dos desativados. Ele ficaria desempregado. O treinamento de um ouvinte é muito específico, limitando-se a apenas algumas operações de rotina e atividades de manutenção. Seria muito difícil encontrar outro trabalho. E, se não conseguisse arranjar outro emprego em até cinco mil horas trissolarianas, seria desidratado à força e incinerado.



A única maneira de evitar esse destino seria se unir a um membro do sexo oposto. Quando isso acontecia, o material orgânico do corpo deles se fundia em um só. Dois terços desse material se tornariam combustível para alimentar a reação bioquímica que renovaria completamente as células do terço restante, criando um corpo novo. Depois, esse corpo se dividiria em três a cinco novas vidas pequenas: os filhos do casal. Eles herdariam parte da memória dos pais, continuariam a própria existência e recomeçariam o ciclo da vida. Mas, considerando a situação do ouvinte, seu status social baixo, o ambiente de trabalho solitário e apertado e a idade avançada, que membro do sexo oposto se interessaria por ele?



Nos últimos anos, o ouvinte havia se perguntado um milhão de vezes: Será que minha vida é só isso? E milhões de vezes ele respondera: Sim, é só isso. A única coisa que você tem na vida é a solidão infinita neste posto de escuta minúsculo.



Ele não podia perder aquele paraíso, mesmo se fosse apenas uma ilusão.



O ouvinte sabia que, na escala do universo, devido à falta de uma linha de base longa o bastante, era impossível determinar a distância de uma fonte de transmissão de rádio em baixa frequência vinda do espaço. Só a direção. A fonte podia ser de grande potência, mas muito longe, ou de baixa potência, mas próxima. Havia bilhões de estrelas naquela direção, e cada uma brilhava em meio a um mar de estrelas situadas a distâncias variadas. Sem saber a distância da fonte, era impossível determinar as coordenadas exatas.



Distância, o segredo era a distância.



Realmente, havia uma forma fácil de determinar a distância da fonte da transmissão: era só responder à mensagem e, se a outra parte desse um retorno imediato, os trissolarianos poderiam determinar a distância com base na velocidade da luz e no tempo em que o sinal levou para ir e voltar. Ou talvez eles demorassem muito para responder, e assim os trissolarianos não teriam como determinar quanto tempo a mensagem levou para chegar.



Mas a questão era: a outra parte responderia? Como aquela fonte havia tomado a iniciativa de enviar uma mensagem para o universo, era muito provável que respondesse ao receber um





contato de Trissolaris. E o ouvinte tinha certeza de que o governo de Trissolaris já teria dado ordens de que fosse enviada uma mensagem para incentivar uma resposta daquele mundo distante. Talvez essa mensagem já tivesse sido enviada, talvez não. E, nessa última hipótese, o ouvinte estava diante de uma oportunidade única de trazer brilho para sua vida humilde.

Ele correu para a tela de operações, elaborou uma mensagem curta e simples no computador e fez o aparelho traduzi-la para a mesma língua da mensagem recebida da Terra. Depois, apontou a antena do posto de escuta na direção de onde a mensagem tinha vindo.

O botão TRANSMITIR era um retângulo vermelho comprido. O ouvinte deixou a mão pairando acima do botão.



O destino da civilização trissolariana inteira dependia daqueles dedos finos.



Sem hesitar, o ouvinte apertou o botão. Uma onda de rádio de alta potência transportou uma mensagem curta para as profundezas do espaço, uma mensagem que poderia salvar a outra civilização.





Não responda!



Não responda!!



Não responda!!!





Não se sabe ao certo como era a residência oficial do príncipe de Trissolaris, mas sem dúvida ele vivia cercado de paredes grossas para se proteger do clima extremo no lado de fora. A pirâmide do jogo Três Corpos era uma hipótese da representação e da localização, bem fundo no subterrâneo, dessa residência.



Cinco horas trissolarianas antes, o príncipe recebeu o informe da comunicação extratrissolariana. Duas horas trissolarianas antes, recebeu outro informe: o Posto de Escuta 1379 havia enviado uma mensagem de alerta na direção da transmissão.



Ele não deu pulos de alegria com o primeiro informe nem mergulhou em depressão com o segundo. Não estava com raiva ou ressentimento. Todas essas emoções — e outras, como medo, tristeza, felicidade e admiração do belo — eram coisas que a civilização trissolariana se esforçava para evitar e eliminar. Essas emoções enfraqueciam espiritualmente o indivíduo e a sociedade e não contribuíam para a sobrevivência nas condições extremas daquele mundo. Os trissolarianos precisavam de dois estados mentais: calma e indiferença. A história dos últimos duzentos e tantos ciclos comprovava que as civilizações centradas nesses dois estados de espírito eram as mais capazes de sobreviver.

— Por que você fez isso? — perguntou o príncipe ao ouvinte do Posto 1379.



— Para não ter vivido em vão — respondeu o ouvinte, tranquilo.



— O alerta que você enviou pode ter custado a chance de sobrevivência da civilização trissolariana.

— Mas deu uma chance à civilização da Terra. Príncipe, o desejo de Trissolaris de possuir espaço para viver é como o desejo de um homem faminto que não come há muito tempo, e também é quase ilimitado. Não podemos dividir a Terra com o povo daquele mundo. A única alternativa seria destruir a civilização terrestre e assumir completamente aquele sistema solar…





Acertei?



— Sim. Mas existe outro motivo para destruir a civilização da Terra. Ela também é uma raça guerreira. Muito perigosa. Se tentássemos conviver no mesmo planeta, eles logo aprenderiam nossa tecnologia. Nessas condições, nenhuma das civilizações poderia prosperar. Quero fazer uma pergunta: você gostaria de ser o salvador da Terra, mas não sente nenhuma responsabilidade para com sua própria raça?



— Estou cansado de Trissolaris. Nossa vida e nossa natureza se limitam à luta pela sobrevivência. Nada além disso.

— E qual é o problema?



— Claro que não tem problema nenhum. A existência é a premissa para tudo o mais. Mas, príncipe, por favor, examine nossas vidas: tudo é destinado à sobrevivência. Para que a civilização como um todo possa sobreviver, não há quase respeito algum pelo indivíduo. Pessoas incapazes de trabalhar são sacrificadas. A sociedade trissolariana existe em um estado de autoritarismo extremo. A lei só permite duas possibilidades: os culpados são sacrificados, e os inocentes são libertados. Para mim, os aspectos mais intoleráveis são a monotonia e a escassez espirituais. Qualquer coisa que possa levar à fragilidade espiritual é considerada nociva. Não possuímos literatura nem arte, nenhuma busca por beleza e prazer. Não podemos nem falar de amor… Príncipe, existe algum sentido em uma vida assim?

— O tipo de civilização que você deseja já existiu em Trissolaris. Havia sociedades democráticas e livres, que deixaram vastos legados culturais. Você não sabe quase nada a respeito delas. A maioria dos detalhes foi classificada como confidencial e escondida do público. De qualquer maneira, de todos os ciclos da civilização trissolariana, aquele foi o mais fraco e breve. Um desastre de pequenas proporções em uma Era Caótica bastou para que tudo fosse extinto. Dê mais uma olhada na civilização terrestre que você deseja salvar. Uma sociedade nascida e criada na primavera eterna de uma linda estufa, mas que nem sequer seria capaz de sobreviver um milhão de horas trissolarianas se fosse transplantada para cá.

— Essa flor pode ser delicada, mas tem um esplendor sem igual: possui liberdade e beleza na tranquilidade do paraíso.

— Se a civilização trissolariana tomar posse desse mundo, também poderemos criar modos de vida assim para nós.

— Não sei, príncipe. O espírito metálico de Trissolaris se infiltrou em cada célula nossa e cristalizou. O senhor acredita mesmo que será possível derretê-lo de novo? Sou um homem comum que vive na camada mais baixa da sociedade. Ninguém presta atenção em mim. Passo a vida sozinho, sem dinheiro, sem status, sem amor, sem esperança. Se eu puder salvar um mundo lindo e distante pelo qual me apaixonei, então minha vida não terá sido em vão. É claro, príncipe, que agindo assim tive a chance de ver o senhor. Se não tivesse tomado essa decisão, um homem como eu só poderia admirá-lo pela TV. Então, gostaria de dizer que estou honrado.

— Você é culpado sem sombra de dúvida. É o maior criminoso entre todos os ciclos da civilização trissolariana. Mas dessa vez abriremos uma exceção na lei de Trissolaris: você pode ir embora.

— Por quê?

— Para você, a desidratação seguida de incineração não chega nem perto de um castigo adequado. Você é velho e não viverá para ver com os próprios olhos a destruição final da civilização terrestre. Mas pelo menos farei com que você saiba que foi incapaz de salvá-la. Quero que você viva até o dia em que não haja mais nenhuma esperança para os habitantes da Terra. Muito bem. Pode ir.


Depois de dispensar o ouvinte do Posto 1379, o príncipe chamou o cônsul responsável pelo sistema de monitoramento. O príncipe também evitou se irritar com ele e lidou com a questão como se fosse rotina.

— Como você pôde permitir que alguém tão fraco e maligno entrasse no sistema de monitoramento?

— Príncipe, o sistema emprega centenas de milhares de trissolarianos. É muito difícil avaliar com rigor todos os candidatos. No fim das contas, esse ouvinte conseguiu cumprir suas obrigações no Posto de Escuta 1379 sem erro durante a maior parte da vida. Agora, é claro que sou responsável por esse erro gravíssimo.



— Quantos outros também têm responsabilidade por essa falha no Sistema de Monitoramento Espacial de Trissolaris?

— Minha investigação preliminar indica que são seis mil trissolarianos, distribuídos por todos os escalões.

— São todos culpados.



— Sim.



— Desidrate os seis mil e queime todos juntos na praça, no meio da capital. Você pode ser o graveto que vai acender a fogueira.

— Obrigado, príncipe. Isso pelo menos vai tranquilizar um pouco nossa consciência.



— Antes de aplicar o castigo, quero perguntar: até onde aquela mensagem de alerta pode viajar?

— O Posto de Escuta 1379 é uma unidade pequena sem alta potência de transmissão. O alcance máximo deve ser de doze milhões de horas-luz, cerca de mil e duzentos anos-luz.

— Isso é bastante longe. Tem alguma sugestão sobre o que a civilização de Trissolaris deve fazer agora?

— Que tal transmitir uma mensagem cuidadosamente preparada para encorajar aquele mundo a responder?

— Não. Isso pode piorar a situação. Pelo menos a mensagem de alerta era muito curta. Esperemos que ignorem ou interpretem mal o conteúdo… Muito bem. Pode ir.

Quando o cônsul saiu, o príncipe convocou o comandante da Frota Trissolariana.



— Quanto tempo até concluir os preparativos para a primeira onda da frota?



— Príncipe, a frota ainda se encontra na última fase da construção. Precisamos de pelo menos mais sessenta mil horas para que as naves possam navegar no espaço.

— Em breve submeterei meu plano à aprovação da Sessão Consular Conjunta. Quando a construção for concluída, a frota deverá rumar para aquela direção imediatamente.

— Príncipe, levando em conta a frequência da transmissão, não é possível determinar com





muita precisão nem a direção da fonte. A frota só é capaz de viajar a um centésimo da velocidade da luz. Além disso, só tem reserva de energia suficiente para desacelerar uma vez, de modo que é impossível realizar uma busca ampla naquela direção. Se a distância até o alvo for imprecisa, a frota acabará caindo no abismo do espaço.



— Mas olhe para os três sóis ao nosso redor. A qualquer momento, a camada externa de plasma de um deles pode começar a se expandir e engolir o último planeta, nosso mundo. Não temos escolha. Precisamos fazer essa aposta.







33. TRISSOLARIS: SÓFON



















Oitenta e cinco mil horas trissolarianas (cerca de 8,6 anos terrestres) depois



O príncipe havia convocado uma reunião de emergência com todos os cônsules de Trissolaris.



Como isso era muito incomum, devia ter acontecido algo importante.



A Frota Trissolariana fora lançada vinte mil horas antes. As naves sabiam a direção aproximada do alvo, mas não a distância. Era possível que o alvo estivesse a milhões de anos-luz de distância ou até mesmo do outro lado da galáxia. Diante de um oceano infinito de estrelas, a expedição não tinha muitas expectativas.



A reunião dos cônsules aconteceu sob o Monumento do Pêndulo. (Quando Wang Miao leu sobre esse episódio, não conseguiu deixar de pensar na sessão na sede da ONU no Três Corpos. Na realidade, o Monumento do Pêndulo era um dos poucos objetos do jogo que existia de verdade em Trissolaris.)



O lugar escolhido pelo príncipe para a reunião intrigou a maioria dos participantes. A Era Caótica ainda não havia terminado, e um sol pequeno acabava de nascer no horizonte, embora pudesse se pôr a qualquer momento. Fazia frio, e todos os trissolarianos foram obrigados a usar trajes de aquecimento elétrico por todo o corpo. O movimento do pêndulo metálico colossal era magnífico e agitava o ar gélido. O sol pequeno produzia uma sombra comprida no chão, como se um gigante da altura do céu estivesse caminhando. Diante dos olhos atentos da multidão, o príncipe subiu à base do pêndulo e apertou um botão vermelho.

Depois, virou-se para os cônsules e disse:



— Acabei de desligar a energia do pêndulo. Ele vai parar aos poucos pela resistência do ar.



— Mas por quê, príncipe? — perguntou um cônsul.



— Todos compreendemos a importância histórica do pêndulo. Ele foi criado para hipnotizar Deus. Mas agora sabemos que, para a civilização de Trissolaris, é melhor que Deus esteja acordado, porque Ele nos abençoou.



Ninguém falou nada. Todo mundo refletia sobre o significado das palavras do príncipe. O pêndulo oscilou mais três vezes.

— A Terra respondeu? — perguntou alguém.



— Sim. Recebi a informação há meia hora. Foi uma resposta ao alerta enviado.



— Tão rápido! Só se passaram oitenta mil horas depois daquilo, o que significa… o que significa…





— Significa que a Terra fica a apenas quarenta mil horas-luz daqui.



— Não é a estrela mais próxima de nós?



— Sim. Foi por isso que disse que Deus abençoou nossa civilização.



Os cônsules ficaram em êxtase, mas não conseguiram expressar tal sentimento. O grupo parecia um vulcão prestes a explodir. Como o príncipe sabia que seria perigoso permitir que essas emoções viessem à tona, jogou um balde de água fria neles.



— Já passei a ordem para que a Frota Trissolariana se dirija para essa estrela. Mas a situação não é tão boa quanto vocês imaginam. Considerando o que já sabemos, neste momento a frota está se dirigindo para a morte certa.



Os cônsules se acalmaram.



— Alguém compreende minha conclusão?



— Sim — disse o cônsul científico. — Todos nós estudamos com cuidado as primeiras mensagens da Terra. A parte mais digna de atenção se refere à história dessa civilização. Vamos aos fatos: os seres humanos levaram mais de cem mil anos terrestres para evoluir da Era de Caça e Coleta para a Era Agrícola. Para ir da Era Agrícola para a Industrial, levaram alguns milhares de anos. Agora, para ir da Era Industrial para a Atômica, só levaram duzentos anos terrestres. Depois, em apenas algumas décadas terrestres, entraram na Era da Informação. Essa civilização possui uma capacidade assustadora de acelerar o próprio progresso.

“Em Trissolaris, em mais de duzentas civilizações, incluindo a atual, nenhuma jamais apresentou um desenvolvimento acelerado desses. O progresso da ciência e da tecnologia em todas as civilizações trissolarianas sempre seguiu um ritmo constante ou de desaceleração. Em nosso mundo, cada era tecnológica exige aproximadamente o mesmo período para um desenvolvimento lento e constante.”



O príncipe assentiu.



— Daqui a quatro milhões e quinhentas mil horas, quando a Frota Trissolariana tiver chegado



à Terra, o nível tecnológico daquela civilização terá superado em muito o nosso, em virtude desse desenvolvimento acelerado. Esse é o fato. A jornada da Frota Trissolariana é longa e árdua, e a frota precisará passar por dois cinturões de poeira interestelar. É muito provável que apenas metade das naves chegue ao sistema solar da Terra, e as outras perecerão no caminho. E aí, a Frota Trissolariana estará à mercê de uma civilização terrestre muito mais poderosa. Isso não é uma expedição, e sim um cortejo fúnebre!

— Mas, príncipe, se isso for verdade, as consequências são ainda mais assustadoras… — disse o cônsul militar.

— Sim. É fácil de imaginar. A localização de Trissolaris foi revelada. A fim de eliminar ameaças futuras, uma frota interestelar da Terra lançará um contra-ataque. É muito possível que, bem antes de nosso planeta ser engolido por uma expansão solar, a civilização trissolariana já tenha sido extinta pelos humanos.



De repente, o futuro luminoso se transformou em uma sina terrivelmente sombria. Os presentes se calaram.

— O que devemos fazer agora — disse o príncipe — é conter o avanço da ciência na Terra. Felizmente, assim que recebemos as primeiras mensagens, começamos a planejar isso. Agora,





descobrimos uma condição favorável para colocar esses planos em ação. A resposta que acabamos de receber foi enviada por uma traidora da Terra. Por isso, temos motivos para acreditar que existem muitas forças alienadas em meio à civilização terrestre e devemos explorar ao máximo essa oportunidade.



— Príncipe, isso não é muito fácil. Nossos meios de comunicação com a Terra são ínfimos. Leva mais de oitenta mil horas para uma troca de mensagens.

— Mas lembrem que, assim como aconteceu conosco, o conhecimento de que existem civilizações extraterrestres provocará um choque em toda a sociedade terrestre e deixará marcas profundas. Temos motivos para acreditar que as forças alienadas na civilização terrestre vão se unir e crescer.



— O que elas podem fazer? Sabotagem?



— Considerando o intervalo de quarenta mil horas, qualquer tática tradicional de guerra ou de terrorismo tem valor estratégico irrisório, e eles podem se recuperar. Para conter mesmo o desenvolvimento da civilização e desarmá-la por muito tempo, só há um jeito: matar a ciência na Terra.



— O plano é enfatizar os efeitos ambientais negativos do desenvolvimento científico e demonstrar indícios de um poder sobrenatural para a população da Terra — disse o cônsul científico. — Além de destacar os efeitos negativos do progresso, também tentaremos usar uma série de “milagres” para produzir um universo ilusório que não possa ser explicado pela lógica da ciência. Quando essas ilusões perdurarem por algum tempo, existe uma possibilidade de que a civilização trissolariana passe a ser alvo de adoração religiosa por lá. Assim, a mentalidade contrária à ciência vai dominar o pensamento dos intelectuais da Terra, levando ao colapso de todo o sistema de pensamento científico.



— Como podemos criar esses milagres?



— Para um milagre dar certo, ele não pode ser desvendado. Esse é o segredo. Isso pode exigir o envio de algumas tecnologias trissolarianas muito superiores ao nível atual da humanidade para as forças alienadas da Terra.



— Isso é muito arriscado! Como saber onde essas tecnologias vão acabar parando? É brincar com o perigo.

— Claro, ainda é preciso uma análise melhor e mais específica de quais tecnologias serão transferidas para a produção dos milagres…

— Por favor, espere um pouco, cônsul científico — disse o cônsul militar, levantando-se. — Príncipe, sou da opinião de que esse plano será quase inútil para impedir o progresso da ciência humana.



— Mas é melhor do que nada — defendeu o cônsul científico.



— Não muito — respondeu o cônsul militar, com desdém.



— Concordo com seu ponto de vista — disse o príncipe. — Esse plano causará apenas uma ligeira interferência no desenvolvimento científico da humanidade. Precisamos de um fator decisivo que sufoque completamente a ciência na Terra e a paralise no nível atual. Vamos considerar o elemento-chave aqui: o desenvolvimento tecnológico geral depende do avanço da ciência de base, e a essência da ciência de base é a exploração da estrutura elementar da matéria.





Se não houver avanços nessa área, será impossível qualquer evolução da ciência e da tecnologia como um todo. Claro, isso não vale somente para a civilização da Terra, mas para todos os alvos que Trissolaris pretende conquistar. Já havíamos começado a trabalhar nisso antes mesmo de receber a primeira comunicação extratrissolariana. Mas redobramos os esforços recentemente.

“Agora, olhem todos para cima. O que é aquilo?”



O príncipe apontou para o céu. Os cônsules levantaram a cabeça para olhar e viram no espaço um anel que emitia um brilho metálico com a luz do sol.



— Aquele é o dique para a construção da segunda frota espacial?



— Não. É um grande acelerador de partículas ainda em desenvolvimento. Os planos para a construção da segunda frota espacial foram abortados. Todos os recursos foram transferidos para o projeto Sófon.



— Projeto Sófon?



— Sim. Mantivemos esse plano em segredo da maioria dos aqui presentes. Agora peço que o cônsul científico faça uma apresentação.

— Eu sabia desse plano, mas não imaginava que havia avançado tanto — disse o cônsul industrial.

— Eu também sabia, mas achei que parecia um conto de fadas — disse o cônsul da Cultura e Educação.

— O projeto Sófon, basicamente — disse o cônsul científico —, visa transformar um próton em um computador superinteligente.*

— Quase todos nós já ouvimos falar nessa fantasia científica — disse o cônsul da Agricultura.



— Mas é algo realizável? Eu sei que os físicos já são capazes de manipular nove das onze dimensões da escala micro, mas ainda não fazemos ideia de como seria possível enfiar pinças em um próton e construir circuitos integrados de larga escala.



— É claro que isso é impossível. A criação de microcircuitos integrados só pode ser feita em escala macro, e apenas em um plano macroscópico bidimensional. Por isso, precisamos abrir um próton em duas dimensões.



— Abrir uma estrutura de nove dimensões em duas? De que tamanho vai ser essa área? —Muito grande, como vocês verão.

O cônsul científico sorriu.





Passaram-se mais sessenta mil horas trissolarianas. Vinte mil horas depois do fim da construção do gigantesco acelerador de partículas no espaço, a abertura do próton em duas dimensões estava prestes a começar em órbita síncrona com Trissolaris.



Era um dia bonito e agradável de uma Era Estável. O céu estava particularmente limpo. Como no dia em que a frota havia zarpado oitenta mil horas antes, toda a população de Trissolaris olhou para o céu e ficou observando aquele anel gigantesco. O príncipe e todos os cônsules voltaram a se reunir sob o Monumento do Pêndulo. Já fazia muito tempo que o pêndulo tinha parado de se mover, e o peso parecia uma pedra sólida entre as duas colunas altas. Para quem olhava, era difícil acreditar que aquilo já havia oscilado.



O cônsul científico deu a ordem de abrir em duas dimensões. No espaço, três cubos voaram





em volta do anel — os geradores de fusão que forneciam energia ao acelerador. Aos poucos, os dissipadores de calor em forma de asas começaram a brilhar com uma ligeira luz avermelhada. A multidão ansiosa encarava o acelerador, mas não parecia estar acontecendo nada.

Um décimo de hora trissolariana depois, o cônsul científico levou o fone ao ouvido e aguardou atentamente.



— Príncipe — disse ele enfim —, infelizmente a abertura não deu certo. Reduzimos uma dimensão a mais, e o próton se tornou unidimensional.

— Unidimensional? Uma linha?



— Sim. Uma linha infinitamente fina. Na teoria, deve ter cerca de mil e quinhentas horas-luz de comprimento.

— Investimos os recursos destinados a outra frota espacial só para obter um resultado desses?



— questionou o cônsul militar.



— Em experimentos científicos, percalços são normais. Leva algum tempo para superar os obstáculos. Além do mais, esta é a primeira vez que tentamos realizar uma abertura.

A multidão se dispersou desanimada, mas o experimento não terminou. De início, imaginou-se que o próton unidimensional permaneceria em órbita síncrona com Trissolaris para sempre, mas, por conta da fricção dos ventos solares, pedaços da corda caíram na atmosfera. Seis horas trissolarianas depois, quem olhasse para o céu perceberia luzes estranhas no ar, fiapos translúcidos que sumiam e apareciam do nada. Logo os trissolarianos descobriram que isso era o próton unidimensional, descendo até o chão em função da gravidade. Embora a corda fosse infinitamente fina, ela produzia um campo que ainda era capaz de refletir luz visível. Foi a primeira vez que os trissolarianos viram matéria não formada por átomos — os fiapos sedosos eram apenas pequenos fragmentos de um próton.

— Essas coisas são muito irritantes. — O príncipe passou a mão na frente do rosto várias vezes. Ele e o cônsul científico estavam na escadaria larga do Centro de Governo. — Meu rosto não para de coçar.



— Príncipe, essa sensação é totalmente psicológica. Somadas, todas as cordas têm a massa de um único próton, então é impossível que tenham qualquer efeito no mundo macroscópico. São inofensivas. É como se nem existissem.



Mas os fragmentos que caíram do céu foram ficando cada vez mais numerosos e densos. Perto do solo, o ar estava cheio de lampejos minúsculos. O sol e as estrelas pareciam cercados por halos prateados. As cordas se enrolavam em quem saía para uma área aberta e, quando os trissolarianos andavam, arrastavam as luzes consigo. Quando os trissolarianos voltavam para algum lugar fechado, o reflexo das cordas revelava desenhos nas correntes de ar deslocado. Embora a corda unidimensional só pudesse ser vista com luz e não fosse sentida, as pessoas começaram a se incomodar.



A torrente de cordas unidimensionais se estendeu por mais de vinte horas trissolarianas, até enfim acabar, mas não porque todos os fragmentos tivessem caído no chão. Embora absurdamente pequena, ainda assim a massa existia, então a aceleração pela gravidade era a mesma de qualquer matéria normal. No entanto, ao chegar à atmosfera, esses fragmentos eram completamente dominados pelas correntes de ar e não caíam no chão. Após se abrir em uma





dimensão, a força nuclear forte no interior do próton ficou muito atenuada, o que enfraqueceu a corda. Aos poucos, ela se desfez em pedaços minúsculos, e a luz refletida deixou de ser visível. Os trissolarianos acharam que ela havia desaparecido, mas pedaços da corda unidimensional continuariam flutuando no ar de Trissolaris para sempre.





Cinquenta horas trissolarianas depois, foi iniciada a segunda tentativa de abrir um próton em duas dimensões. Em pouco tempo, a multidão no solo viu algo estranho. Quando os dissipadores de calor dos geradores de fusão começaram a ficar vermelhos, apareceram vários objetos colossais perto do acelerador. Todos tinham formas geométricas regulares sólidas: esferas, tetraedros, cubos, cones etc. Embora sua superfície tivesse uma coloração complexa, uma observação mais detida demonstrou que, na verdade, eles eram incolores. A superfície dos objetos geométricos era completamente reflexiva, e o que os trissolarianos viam era apenas o reflexo distorcido da superfície de seu planeta.



— Conseguimos? — perguntou o príncipe. — Aquilo é o próton aberto em duas dimensões?



— Príncipe, é um novo fracasso — respondeu o cônsul científico. — Acabo de ser informado pelo centro de controle do acelerador. A abertura preservou uma dimensão a mais, e o próton foi aberto em três dimensões.



Os sólidos geométricos reflexivos continuaram aparecendo em grande número, e as formas foram ficando cada vez mais variadas. Havia toroides, cruzes sólidas e até algo que parecia uma fita de Möbius. Todos os objetos geométricos se afastaram do acelerador. Cerca de meia hora depois, mais da metade do céu estava tomado por eles, como se uma criança gigante tivesse esvaziado uma caixa de blocos de brinquedo no firmamento. Com a luz lançada pelas superfícies reflexivas, a luminosidade que atingia o solo duplicou, mas a intensidade variava constantemente. A sombra do pêndulo gigante piscava e oscilava sem parar.

Depois, todas as formas geométricas começaram a se deformar. Aos poucos, foram perdendo o formato regular, como se estivessem derretendo com o calor. A deformação se acelerou, e as massas resultantes ficaram mais e mais complexas. Os objetos já não lembravam blocos de montar, e sim vísceras e membros decepados. Como os formatos não eram mais regulares, a luz refletida para o solo ficou mais fraca, mas as cores das superfícies passaram a ser ainda mais estranhas e imprevisíveis.



Nessa confusão de objetos tridimensionais, alguns chamaram a atenção dos trissolarianos no solo. À primeira vista, apenas porque os objetos se pareciam muito. Mas, ao reparar um pouco melhor, todos reconheceram do que se tratava, e uma onda de pânico se espalhou por Trissolaris.

Eram olhos! [Evidentemente, não sabemos como são os olhos dos trissolarianos, mas com certeza qualquer vida inteligente é muito sensível à representação de olhos.]

O príncipe foi um dos poucos que continuou calmo.



— Quão complicada é a estrutura interna de uma partícula subatômica? — perguntou ele ao cônsul científico.

— Depende da quantidade de dimensões da perspectiva de observação. Por uma perspectiva unidimensional, a partícula é só um ponto… para pessoas comuns, isso é o que as partículas são. Por uma perspectiva bi ou tridimensional, a partícula começa a apresentar uma estrutura interna.





Por uma perspectiva quadridimensional, uma partícula elementar é um mundo imenso.



— Usar uma palavra como “imenso” para descrever uma partícula subatômica como um próton me parece estranho — disse o príncipe.

O cônsul científico ignorou o príncipe e continuou:



— À medida que vamos avançando para dimensões superiores, a complexidade e a quantidade de estruturas em uma partícula aumentam drasticamente. As comparações que vou fazer não são muito precisas, mas devem dar uma ideia da escala. A complexidade de uma partícula vista por uma perspectiva heptadimensional é equiparável ao nosso sistema estelar de Trissolaris tridimensional. Por uma perspectiva octodimensional, uma partícula é uma presença tão vasta quanto a Via Láctea. Quando a perspectiva se eleva a nove dimensões, as estruturas e a complexidade internas da partícula são comparáveis ao universo inteiro. Quanto às dimensões ainda mais altas, como nossos físicos ainda não conseguiram explorá-las, não temos como fazer ideia do nível de complexidade.



O príncipe apontou para os olhos gigantes no espaço.



— Aquilo indica que o microcosmo contido no próton aberto possui vida inteligente?



— Nossa definição de “vida” provavelmente não se aplica ao microcosmo pluridimensional. Na realidade, só podemos dizer que esse universo contém inteligência ou sabedoria. Os cientistas já previram essa possibilidade há muito tempo. Seria estranho se um mundo tão complexo e vasto não tivesse desenvolvido alguma forma de inteligência.

— Por que eles se transformaram em olhos para nos observar? — O príncipe fitou os olhos no espaço, estranhas esculturas, belas e vívidas, todas encarando o mundo.

— Talvez eles só queiram mostrar presença.



— Algum perigo de caírem aqui?



— Nenhum. Pode ficar tranquilo, príncipe. Mesmo se eles caíssem, a massa total daquelas estruturas enormes é de apenas um próton. Assim como a corda unidimensional da outra vez, eles não terão efeito algum em nosso mundo. Os trissolarianos só vão ter que se acostumar com a estranha paisagem.



Só que dessa vez o cônsul científico estava enganado.



Os trissolarianos perceberam que o movimento dos olhos era mais rápido que o das outras formas sólidas no céu, e eles estavam se juntando em um só lugar. Pouco depois, dois olhos se encontraram e se fundiram em um maior. Cada vez mais olhos se juntaram a esse olho maior, e o volume cresceu. Por fim, todos os olhos se fundiram em um só, tão imenso que parecia representar o olhar do universo voltado para Trissolaris. A íris era nítida e clara, e no centro se via a imagem de um sol. Na superfície larga do globo ocular, uma variedade de cores se alternava sem parar. Logo os detalhes do olho gigante perderam definição e acabaram sumindo, até a forma parecer um olho cego sem pupila. Em seguida, ele começou a se deformar até perder a forma de olho e se tornar um círculo perfeito. Quando o círculo começou a girar, os trissolarianos perceberam que não era plano, e sim parabólico, como se fosse um pedaço de uma esfera gigante.



Enquanto observava o objeto colossal girando lentamente no espaço, o cônsul militar entendeu de repente e gritou:





— Príncipe e todos os outros, por favor, entrem no abrigo subterrâneo agora mesmo. — Ele apontou para cima. — Aquilo é…

— Um espelho parabólico — disse o príncipe, calmo. — Deem ordem para que as forças de defesa espacial destruam aquilo agora mesmo. Ficaremos bem aqui.

O espelho parabólico apontou os raios do sol para a superfície de Trissolaris. A princípio, a área iluminada era muito grande, e o calor no ponto focal não era letal. A área se deslocou pelo solo, em busca do alvo, até o espelho descobrir a capital, a maior cidade de Trissolaris, e começar a deslocar a luz até ela. Pouco depois, os raios estavam sobre a cidade.

Os trissolarianos que estavam no Monumento do Pêndulo só viram uma grande luminosidade no espaço, banhando tudo e trazendo uma onda de calor extremo. A área iluminada na capital diminuiu conforme o espelho parabólico concentrava a luz. O brilho do espaço foi ficando cada vez mais forte, até o ponto de ninguém mais conseguir levantar a cabeça, e os trissolarianos que estavam na área iluminada sentiram a temperatura aumentar depressa. Quando o calor estava ficando insuportável, a margem da área iluminada passou pelo Monumento do Pêndulo, e tudo se escureceu um pouco. Levou um tempo até os olhos dos trissolarianos se acostumarem à clareza normal.



Quando todos olharam para cima, a primeira imagem que viram foi a de um pilar de luz entre o céu e a terra, da forma de um cone invertido. O espelho no espaço era a base do cone, e a ponta estava cravada no centro da capital, deixando tudo incandescente. Ondas de fumaça começaram a subir. Tornados causados pela diferença de calor do cone de luz formaram várias outras colunas de poeira que iam até o céu, rodopiando e dançando em volta do cone de luz…

Várias bolas de fogo reluzentes apareceram em diversos pontos do espelho, uma cor azulada que se distinguia da luz refletida. Eram ogivas nucleares lançadas pelo corpo de defesa espacial de Trissolaris. Como as explosões estavam acontecendo acima da atmosfera, não fizeram nenhum barulho. Quando as bolas de fogo desapareceram, havia vários buracos enormes no espelho, e então toda a superfície começou a rachar e se despedaçar, até se quebrar em dezenas de pedaços.



O cone de luz mortal sumiu e o mundo voltou à iluminação normal. Por um instante, o céu estava escuro como em uma noite sem luar. Os pedaços quebrados do espelho, agora sem inteligência, continuaram se deformando e logo ficaram indistinguíveis dos demais objetos geométricos no espaço.



— O que vai acontecer no próximo experimento? — O príncipe falou com o cônsul científico em um tom de voz mordaz. — Você vai abrir um próton em quatro dimensões?

— Príncipe, mesmo se isso acontecesse, não haveria motivos para preocupação. Um próton aberto em quatro dimensões será muito menor. Se o corpo de defesa espacial está preparado para atacar a projeção no espaço tridimensional, também está no espaço quadridimensional.

— Você está enganando o príncipe! — disse o cônsul militar, furioso. — Você não falou do maior perigo. E se o próton acabar sendo aberto em zero dimensões?

— Zero dimensões? — O príncipe ficou interessado. — Isso não seria um ponto sem tamanho?

— Sim, uma singularidade! Até um próton seria infinitamente grande em comparação a isso.





A massa inteira do próton estará contida nessa singularidade, e a densidade será infinita.



Príncipe, com certeza o senhor imagina o que isso seria.



— Um buraco negro?



— Sim.



— Príncipe, gostaria de explicar — intercedeu o cônsul científico. — O motivo por que escolhemos um próton para abrir em duas dimensões, e não um nêutron, foi justamente para evitar esse tipo de risco. Se acabássemos mesmo abrindo em zero dimensões, a carga do próton também iria para o buraco negro aberto. Assim, poderíamos capturá-lo e controlá-lo com eletromagnetismo.



— E se você não conseguir encontrá-lo ou controlá-lo? — perguntou o cônsul militar. — Ele poderia cair no solo, absorver tudo o que encontrar e aumentar de massa. Depois, ele desceria até o núcleo deste planeta e acabaria por absorver toda Trissolaris.

— Isso nunca vai acontecer. Eu garanto! Por que você sempre dificulta a minha vida? Como eu disse, isto é um experimento científico…

— Já chega! — disse o príncipe. — Qual é a probabilidade de sucesso da próxima tentativa?



— Quase cem por cento! Príncipe, por favor, acredite em mim. Com esses dois insucessos, já conseguimos dominar os princípios da mecânica de abertura de estruturas subatômicas em um espaço macro bidimensional.



— Muito bem. Para permitir a sobrevivência da civilização trissolariana, precisamos correr o risco.

— Obrigado!



— Mas, se você fracassar de novo, você e todos os cientistas que trabalham no projeto Sófon serão culpados.

— Sim, claro, todos culpados. — Se os trissolarianos fossem capazes de transpirar, o cônsul científico devia estar encharcado de suor.

Foi muito mais fácil remover os resquícios tridimensionais do próton aberto em órbita síncrona do que tinha sido remover a corda unidimensional. Naves pequenas conseguiram afastar os pedaços do próton para longe de Trissolaris e evitar que eles entrassem na atmosfera. Os objetos, alguns do tamanho de uma montanha, não tinham quase nada de massa. Pareciam ilusões prateadas imensas: até um bebê teria conseguido empurrá-los com facilidade.

Depois, o príncipe perguntou ao cônsul científico:



— Nós destruímos uma civilização no microcosmo deste experimento?



— Era no mínimo um corpo inteligente. Por sinal, príncipe, destruímos o microcosmo inteiro. Aquele universo em miniatura é imenso em dimensões superiores e provavelmente continha mais de uma inteligência ou civilização que nunca teve a chance de se expressar no espaço macro. É claro que, em um espaço de dimensões superiores nessas escalas micros, as civilizações ou inteligências podem assumir formas inconcebíveis para nós. É absolutamente impressionante. E

é muito provável que destruições como essa já tenham acontecido muitas vezes antes.



— Como assim?



— Na longa história do progresso científico, quantos prótons já foram arrebentados pelos físicos nos aceleradores? Quantos nêutrons e elétrons? Possivelmente não menos de cem





milhões. É provável que cada colisão tenha sido o fim das civilizações e inteligências que habitavam um microcosmo. Na verdade, até mesmo na natureza, a cada segundo universos devem estar sendo destruídos, como por exemplo com o decaimento dos nêutrons. Além disso, um raio cósmico de alta energia que entra na atmosfera pode destruir milhares de universos em miniatura… O senhor não está se sentindo mal por causa disso, não é?

— Não me faça rir. Informarei agora mesmo o cônsul de Propaganda e darei instruções para que divulgue repetidamente esse fato científico para o mundo. Os trissolarianos precisam entender que a destruição de civilizações é um acontecimento comum que ocorre a cada segundo de cada hora.



— Por quê? O senhor deseja incentivar o povo a encarar a possível destruição de Trissolaris com tranquilidade?

— Claro que não. Para incentivar os trissolarianos a encarar a destruição da Terra com tranquilidade. Você sabe tão bem quanto eu que, assim que nossa política em relação à civilização terrestre for divulgada, haverá uma onda extremamente perigosa de pacifismo. Acabamos de descobrir que existem muitos trissolarianos como o ouvinte do Posto 1379. Precisamos controlar e eliminar esse sentimento de fraqueza.



— Príncipe, isso é acima de tudo o resultado das mensagens recentes que recebemos da Terra. Sua previsão se confirmou: as forças alienadas na Terra estão mesmo crescendo. Eles construíram o novo sistema de transmissão sobre o qual têm pleno controle e começaram a nos enviar grandes quantidades de informações sobre sua civilização na Terra. Devo admitir que a civilização deles exerce uma grande atração em Trissolaris. Para nosso povo, parece uma música sagrada do paraíso. O humanismo da Terra vai conduzir muitos trissolarianos pelo caminho errado. Assim como a civilização trissolariana já se tornou uma religião na Terra, a da Terra também tem o mesmo potencial em Trissolaris.

— Você apontou um grande perigo. Controlaremos com rigor as informações que vêm da Terra e chegam para a população, sobretudo informações culturais.





A terceira tentativa de abrir um próton em duas dimensões começou trinta horas trissolarianas depois. Dessa vez, foi à noite. Não dava para ver o anel do acelerador no espaço a partir do solo

— a posição dele só era indicada pelo brilho vermelho dos dissipadores de calor dos reatores de fusão. Pouco depois de o acelerador começar a operar, o cônsul científico anunciou o sucesso.

Os trissolarianos olharam para o céu noturno e, a princípio, não viram nada. Mas logo apareceu uma imagem milagrosa: os céus se dividiram em duas partes. A posição das estrelas em cada uma das partes não batia, como se alguém tivesse colocado uma fotografia pequena do céu em cima de outra maior. A Via Láctea parecia quebrada na linha entre os dois céus. A parte menor do firmamento estrelado era circular e se expandiu depressa diante do céu noturno normal.



— Aquela constelação ali é do hemisfério sul! — disse o cônsul da Cultura e Educação, apontando para o trecho redondo cada vez maior do céu.

Enquanto os trissolarianos exercitavam a imaginação para entender como as estrelas que só podiam ser vistas do outro lado do planeta estavam aparecendo superpostas ao céu do hemisfério





norte, aconteceu um cenário ainda mais incrível: na borda do segmento expansivo do céu noturno do hemisfério sul surgiu um pedaço de um globo gigantesco. Tinha um tom amarronzado e estava se revelando aos poucos, tira a tira, como se fosse uma tela com uma taxa de atualização muito lenta. Todos reconheceram o globo: era possível ver o contorno nítido dos continentes familiares. Quando ficou completo, o globo ocupou um terço do céu. Mais detalhes ficaram claros: rugas de cordilheiras montanhosas estendidas por continentes amarronzados, uma cobertura esparsa de nuvens distribuída pelos continentes como se fosse neve…



— É o nosso planeta! — gritou alguém, enfim. Sim, havia aparecido outra Trissolaris no céu.

Depois, o céu clareou. Ao lado da segunda Trissolaris no espaço, o círculo expansivo do céu



noturno do hemisfério sul revelou outro sol. Nitidamente, era o mesmo sol que estava iluminando aquele hemisfério, mas parecia ter a metade do tamanho.



Finalmente, alguém entendeu:



— É um espelho.



O espelho imenso que apareceu acima de Trissolaris era o próton aberto, um plano geométrico sem nenhuma profundidade significativa.



Quando o processo de abertura terminou, o céu inteiro foi substituído pelo reflexo do céu noturno do hemisfério sul. No meio do espelho, o céu estava dominado pelo reflexo de Trissolaris e do sol. E então o céu começou a se deformar perto do horizonte em todas as direções, e as estrelas refletidas se esticaram e retorceram como se estivessem derretendo. A deformação começou nas bordas do espelho, mas começou a se dirigir para o centro.

— Príncipe, o plano de próton está sendo deformado pela gravidade do planeta — disse o cônsul científico. Ele indicou os vários pontos de luz no céu estrelado: era como se os trissolarianos estivessem apontando lanternas para a redoma. — Aquilo são raios eletromagnéticos lançados do solo para ajustar a curvatura do plano contra a gravidade. A ideia é envolver toda Trissolaris com o próton aberto. Depois, os raios eletromagnéticos vão continuar mantendo e estabilizando essa esfera imensa, como se fossem muitas escoras. Desse modo, Trissolaris se transformará em um andaime para firmar o próton bidimensional, e começará o trabalho de gravar os circuitos eletrônicos na superfície do plano de próton.

Levou muito tempo para envolver toda Trissolaris com o plano de próton bidimensional. Quando a deformação do reflexo chegou à imagem de Trissolaris no zênite do plano, todas as estrelas já haviam desaparecido, pois o plano de próton estava encurvado do outro lado do planeta e as escondia totalmente. Ainda se infiltrava um pouco de luz do sol para dentro do plano curvo, e a imagem distorcida de Trissolaris nessa casa de espelhos espacial estava irreconhecível. Mas, por fim, quando o último raio de luz do sol foi bloqueado, Trissolaris mergulhou na noite mais escura de todos os tempos. Quando a gravidade e os raios eletromagnéticos se equilibraram, o plano de próton se transformou em uma casca gigantesca em órbita síncrona com Trissolaris.

Seguiu-se um frio intenso. A superfície completamente reflexiva do plano de próton lançava toda a luz do sol de volta para o espaço. A temperatura em Trissolaris teve uma queda brusca, chegando a um nível comparável à ocorrência simultânea de três estrelas voadoras, que fora a ruína de muitos ciclos de civilização no passado. A maioria da população trissolariana se





desidratou e foi armazenada. Um silêncio sepulcral cobriu grande parte da superfície enegrecida. No céu, a única luz vinha dos pontos luminosos fracos dos raios que sustentavam a membrana de próton. De vez em quando, alguns outros pontos minúsculos de luz mais forte apareciam em órbita: as naves espaciais que estavam gravando os circuitos na membrana gigantesca.

Os princípios que regiam circuitos integrados em microescala eram completamente diferentes dos de circuitos convencionais, já que a base não era composta de átomos, e sim da matéria de um único próton. As “junções PN” dos circuitos eram feitas pela manipulação local da força nuclear forte na superfície do plano de próton, e as linhas condutoras eram mésons que transmitiam força nuclear. Como a área da superfície era extremamente grande, os circuitos também eram muito grandes. As linhas do circuito eram largas como fios de cabelo, e um observador que se aproximasse o bastante conseguiria percebê-las a olho nu. Vista de perto, a membrana de próton parecia um plano vasto composto de circuitos integrados complexos e detalhados. A área total coberta pelos circuitos era dezenas de vezes maior do que a área dos continentes de Trissolaris.



A gravação dos circuitos no próton era um feito de engenharia colossal, e milhares de naves espaciais trabalharam durante mais de quinze mil horas trissolarianas para concluí-la. O processo de depuração do software levou outras cinco mil horas. Mas enfim chegou o momento de testar o sófon pela primeira vez.



A tela grande no centro de controle do sófon, localizado no subterrâneo do planeta, exibiu o progresso da longa sequência de autoteste. Depois, chegou o momento de carregar o sistema operacional. Por fim, a tela azul vazia exibiu uma linha de texto em fonte grande: Microinteligência 2.10 carregada. Sófon Um pronto para aceitar comandos.



— Nasceu um sófon — disse o cônsul científico. — Dotamos um próton de sabedoria. Esta é a menor inteligência artificial que podemos criar.

— Só que, por enquanto, parece a maior inteligência artificial — disse o príncipe.



— Assim que aumentarmos a dimensionalidade do próton, ela vai ficar muito pequena.



O cônsul científico digitou um comando no terminal:



>Sófon Um, os controles de dimensionalidade espacial estão operacionais?



Afirmativo. Sófon Um é capaz de iniciar ajustes de dimensionalidade espacial a qualquer momento.



>Ajustar dimensionalidade para três.



Quando esse comando foi inserido, a membrana bidimensional do próton que tinha envolvido Trissolaris começou a encolher rapidamente, como se a mão de um gigante estivesse puxando uma cortina de cima do mundo. A luz do sol recaiu sobre o planeta em um instante. O próton se fechou de duas para três dimensões e se transformou em uma esfera descomunal em órbita síncrona, mais ou menos do mesmo tamanho da lua gigante. O sófon estava acima do lado escuro do planeta, mas sua superfície espelhada refletia a luz do sol e transformava a noite em dia. Como a superfície de Trissolaris ainda estava extremamente fria, os trissolarianos no centro de controle só puderam observar as mudanças por uma tela.





Dimensionalidade ajustada com sucesso. Sófon Um está pronto para aceitar comandos.





>Ajustar dimensionalidade para quatro.



No espaço, a esfera descomunal encolheu até parecer ter o tamanho de uma estrela voadora. A noite voltou a cobrir aquele lado do planeta.



— Príncipe, a esfera que estamos vendo não é o sófon completo. É apenas a projeção do corpo do sófon em um espaço tridimensional. Na realidade, em um espaço quadridimensional, ele é um gigante e nosso mundo parece uma folha de papel fina tridimensional. O gigante está de pé em cima dessa folha, só que nós enxergamos apenas o rastro do ponto em que os pés encostam no papel.



Dimensionalidade ajustada com sucesso. Sófon Um está pronto para aceitar comandos.



>Ajustar dimensionalidade para seis.



A esfera no céu desapareceu.



— Qual é o tamanho de um próton hexadimensional? — perguntou o príncipe.



— Cerca de cinquenta centímetros de raio — disse o cônsul científico.



Dimensionalidade ajustada com sucesso. Sófon Um está pronto para aceitar comandos.



>Sófon Um, você consegue nos ver?



Sim. Vejo o centro de controle, todo mundo dentro dele, os órgãos dentro de cada um, e até os órgãos dentro dos órgãos.



— O que é isso que ele está dizendo? — perguntou o príncipe, confuso.



— Um sófon que observa três dimensões a partir de um espaço hexadimensional é semelhante a um trissolariano que olha para um plano bidimensional. É claro que ele consegue enxergar dentro de nós.



>Sófon Um, entre no centro de comando.



— Ele é capaz de atravessar o solo? — perguntou o príncipe.



— Ele não vai “atravessar” exatamente. Na verdade, vai entrar a partir de uma dimensão superior. O sófon é capaz de entrar em qualquer espaço fechado de nosso mundo. Mais uma vez,

é uma situação similar à maneira como nós, seres tridimensionais, nos relacionamos com um plano bidimensional. Poderíamos entrar com tranquilidade em qualquer círculo traçado nesse plano: é só passar por cima. Mas nenhuma criatura bidimensional nesse plano conseguiria entrar sem romper o círculo.



Assim que o cônsul científico terminou de falar, uma esfera espelhada apareceu no meio do centro de controle e ficou flutuando no ar. O príncipe se aproximou e olhou para o próprio reflexo distorcido.



— Isso é um próton? — perguntou ele, admirado.



— Isso é o corpo hexadimensional do próton projetado no espaço tridimensional.



O príncipe estendeu uma das mãos. Como o cônsul científico não se opôs, ele tocou a





superfície do sófon. Sem fazer quase nenhuma força, o sófon foi empurrado a uma distância considerável.



— É muito liso. Embora só tenha a massa de um próton, senti alguma resistência na mão — disse o príncipe, intrigado.



— Isso se deve à resistência do ar na superfície da esfera.



— Você consegue aumentar a dimensionalidade para onze e deixá-lo do tamanho de um próton comum?

Assim que o príncipe terminou de falar, o cônsul científico gritou para o sófon, e sua voz tinha um tom de medo.

— Atenção! Isto não é um comando!



Sófon Um entende.



— Príncipe, se aumentássemos a dimensionalidade para onze, perderíamos a criação para sempre. Quando o sófon encolhe até o tamanho de uma partícula subatômica normal, os sensores internos e as portas de entrada e saída ficam menores do que o comprimento de onda eletromagnética. Logo, ele não seria capaz de sentir o mundo da escala macro e não conseguiria receber nossos comandos.



— Mas em algum momento teremos que fazer esse sófon encolher até voltar a ser uma partícula subatômica.

— É verdade. Mas, para isso, precisaremos esperar a conclusão de Sófon Dois, Sófon Três e Sófon Quatro. Uma quantidade plural de sófons deve ser capaz de formar um sistema que possa sentir o mundo da escala macro por meio de efeitos quânticos. Por exemplo, digamos que um núcleo possui dois prótons. Os dois vão interagir e manter determinados padrões de movimento. Digamos o spin: talvez o spin de cada próton precise ter um sentido oposto ao do outro. Quando esses dois prótons são retirados do núcleo, por mais que se afastem, o padrão vai se manter. Com base nesse efeito, quando os dois prótons são convertidos em sófons, vão criar um sistema de sensibilidade mútua. Uma quantidade maior de sófons então pode compor uma formação de sensibilidade mútua. A escala dessa formação pode ser ajustada para qualquer tamanho e, então, receber ondas eletromagnéticas para sentir o mundo em escala macro em qualquer frequência. Obviamente, os verdadeiros efeitos quânticos necessários para criar uma formação de sófons como essa são muito complexos. Minha explicação é só uma analogia.





A abertura dos outros três prótons em duas dimensões deu certo de primeira, e a construção de cada sófon também levou metade do tempo de Sófon Um. Quando Sófon Dois, Sófon Três e Sófon Quatro foram concluídos, a formação sensível quântica também foi criada com sucesso.

O príncipe e todos os cônsules voltaram a se reunir no Monumento do Pêndulo. Os quatro sófons pairavam acima deles, todos encolhidos em um espaço hexadimensional. A superfície espelhada cristalina de cada um exibia uma imagem do sol nascente, uma visão que lembrava os olhos tridimensionais que haviam aparecido no espaço.





>Formação de sófons, ajustar dimensionalidade para onze.



Quando o comando foi inserido, as quatro esferas espelhadas desapareceram.



— Príncipe — disse o cônsul científico —, agora Sófon Um e Sófon Dois serão lançados na direção da Terra. A partir da grande base de conhecimento armazenada nos microcircuitos, os sófons compreendem a natureza do espaço. São capazes de extrair energia do vácuo, se tornar partículas de alta energia em um instante e navegar pelo espaço quase na velocidade da luz. Embora isso possa parecer violar a lei de conservação de energia, na realidade os sófons só estão pegando “emprestada” a energia da estrutura do vácuo. Porém, a hora de devolver essa energia está muito distante, quando o próton decair. Mas o fim do universo não vai ser muito depois disso.



“Quando os dois sófons chegarem à Terra, a primeira missão será localizar os aceleradores de partículas de alta energia usados pelos humanos que fazem pesquisas em física e se esconder dentro desses dispositivos. Pelo nível de desenvolvimento científico da Terra, o método básico de exploração da estrutura profunda da matéria é acelerar partículas de alta energia e fazê-las colidir com outras partículas. Quando essas partículas são destruídas, os habitantes da Terra analisam os resultados para tentar descobrir informações que demonstrem a estrutura profunda da matéria. Nos experimentos feitos, eles usam a substância que contém as partículas a serem colididas como alvo para os projéteis acelerados.

“Mas o interior da substância atingida é um vácuo quase total. Digamos que um átomo tenha o tamanho de um teatro: o núcleo seria uma noz pairando no meio do teatro. Assim, é muito raro acontecer uma colisão. Por isso, os habitantes da Terra costumam lançar uma grande quantidade de partículas contra o alvo durante algum tempo para que essa colisão se produza. Esse tipo de experimento não é diferente de se procurar em uma tempestade uma gota que seja de uma cor ligeiramente diferente.



“Isso permite que os sófons interfiram. Eles podem assumir o lugar da partícula-alvo e aceitar a colisão. E, como são extremamente inteligentes, podem determinar com muita rapidez e precisão, por meio da formação sensível quântica, as trajetórias que as partículas aceleradas vão seguir e se deslocar para o lugar certo. Desse modo, a probabilidade de que um sófon seja atingido é bilhões de vezes maior do que uma partícula-alvo de verdade. Quando o sófon for atingido, apresentará resultados errados ou caóticos. Assim, mesmo se a partícula-alvo for atingida em algum momento, os físicos da Terra não conseguirão distinguir o resultado correto dos vários incorretos.”



— Isso também não destruiria o sófon? — perguntou o cônsul militar.



— Não. Quando um sófon é despedaçado, são gerados vários sófons novos. E todos continuarão sujeitos ao entrelaçamento quântico entre si, da mesma forma que obtemos dois ímãs se quebrarmos um maior ao meio. Cada sófon parcial terá uma capacidade muito menor do que o sófon original inteiro, mas o software de autorrecuperação fará com que os pedaços se reaproximem e formem outra vez o sófon original. Esse processo só leva um microssegundo e vai ocorrer após a colisão no acelerador, e depois que os pedaços do sófon registrarem os resultados errados na câmara de bolhas ou no filme sensível.

— Seria possível que os cientistas da Terra descobrissem um jeito de detectar os sófons e usar





um campo magnético forte para aprisioná-los? — perguntou alguém. — Os prótons têm carga positiva.



— É impossível. Para detectar os sófons, os seres humanos precisariam realizar grandes avanços no estudo da estrutura profunda da matéria. Porém, todos os aceleradores de alta energia deles vão se transformar em montes de sucata. Como eles conseguirão realizar qualquer avanço nessa área? A presa já terá cegado os olhos do caçador.

— Os humanos ainda poderão apelar para um método de força bruta — comentou o cônsul industrial. — Eles podem construir uma grande quantidade de aceleradores a um ritmo mais rápido do que a nossa capacidade de construir sófons. Assim, pelo menos alguns aceleradores da Terra ficarão livres dos sófons e poderão apresentar resultados corretos.

— Esse é um dos aspectos mais interessantes do projeto Sófon! — O cônsul científico ficou visivelmente animado com a observação. — Senhor cônsul industrial, não se preocupe com o perigo de a construção de muitos sófons produzir o colapso da economia trissolariana. Não precisaremos recorrer a isso. Pode ser que façamos mais alguns, mas não muitos. Na verdade, esses dois já são mais do que o suficiente, porque cada sófon é multitarefa.

— Multitarefa?



— É um termo relacionado aos antigos computadores de série. Antigamente, a unidade central de processamento de um computador só conseguia realizar uma instrução de cada vez. Mas, como isso acontecia de maneira muito rápida e auxiliada por escalonamento de processos, do ponto de vista de nossa perspectiva de baixa velocidade, parecia que o computador estava executando muitos programas ao mesmo tempo. Como vocês sabem, os sófons se movimentam quase à velocidade da luz. A superfície da Terra é um espaço ínfimo para eles. Se os sófons ficarem patrulhando em volta dos aceleradores da Terra nessa velocidade, para os humanos será como se eles existissem ao mesmo tempo em todos os aceleradores, e será possível criar de modo quase simultâneo resultados errados em todos os experimentos.

“Pelos nossos cálculos, cada sófon é capaz de controlar mais de dez mil aceleradores de alta energia. Os humanos levam cerca de quatro a cinco anos para construir cada um desses aparelhos, e não parece provável que esses dispositivos possam ser produzidos em massa com base na economia e nos recursos disponíveis da Terra. Claro, eles poderiam aumentar a distância entre os aceleradores, construindo em outros planetas do sistema deles, o que destruiria a operação multitarefa dos sófons. Mas, no tempo que eles levariam para conseguir isso, também não seria difícil para nós em Trissolaris construirmos pelo menos dez sófons.

“Uma quantidade cada vez maior de sófons vai circular por aquele sistema planetário. A massa total deles não vai chegar nem perto de um bilionésimo da massa de uma bactéria, mas ainda assim eles vão fazer com que os físicos da Terra jamais sejam capazes de vislumbrar os segredos ocultos nas profundezas da estrutura da matéria. Os humanos nunca conseguirão acessar as dimensões da escala micro, e sua capacidade de manipular a matéria permanecerá limitada a menos de cinco dimensões. A partir de agora, seja daqui a quatro milhões e meio ou quatrocentos e cinquenta trilhões de horas, a tecnologia da civilização terrestre jamais realizará esse avanço fundamental. Ela ficará estagnada para sempre no estágio primitivo. A ciência da Terra foi completamente paralisada, e as amarras são tão fortes que os humanos serão incapazes de se libertar por conta própria.”



— Isso é maravilhoso! Por favor, perdoe meu desrespeito anterior pelo projeto Sófon — disse o cônsul militar, com sinceridade.

— Na verdade, atualmente existem apenas três aceleradores com potência suficiente para produzir possíveis avanços. Quando Sófon Um e Sófon Dois chegarem à Terra, terão muita capacidade ociosa. Para aproveitarmos plenamente os sófons, vamos aplicá-los em outras tarefas além da interferência nesses três aceleradores. Por exemplo, eles serão o principal meio de executar o plano Milagre.



— Os sófons conseguem produzir milagres?



— Para os humanos, sim. Todo mundo sabe que partículas de alta energia podem causar exposição em filmes sensíveis. Essa é uma das maneiras pelas quais os aceleradores primitivos da Terra revelavam partículas individuais. Quando um sófon passa pelo filme em alta energia, produz um ponto exposto minúsculo. Se o sófon passar várias vezes pelo filme, poderá ligar os pontos e formar letras, números ou até mesmo imagens, como se fosse um bordado. O processo é muito rápido, bem mais do que a velocidade com que os humanos expõem filme ao tirar fotos. Além do mais, a retina humana é semelhante à trissolariana. Portanto, um sófon de alta energia também pode usar a mesma técnica para exibir letras, números e imagens na retina deles… E, se esses pequenos milagres conseguirem confundir e apavorar os humanos, o próximo grande milagre será suficiente para matar de medo os cientistas da Terra, que são meros insetos: os sófons conseguem fazer com que a radiação cósmica de fundo brilhe nos olhos deles.

— Isso seria muito assustador até para nossos cientistas. Como farão isso?



— Muito simples. Já criamos o software que permite que um sófon se abra em duas dimensões. Quando o processo de abertura acaba, o plano imenso pode envolver a Terra inteira. O software também consegue deixar a membrana transparente, mas essa transparência pode ser ajustada nas frequências da radiação cósmica de fundo em micro-ondas… E, claro, os sófons são capazes de exibir “milagres” ainda mais maravilhosos quando se abrem e fecham em várias dimensões. Ainda estamos desenvolvendo o software para esses casos, mas o desnorteamento que esses “milagres” vão criar será o suficiente para desorientar a ciência humana. Assim, podemos usar o plano Milagre para limitar as iniciativas científicas terrestres de outras áreas além da física.



— Só mais uma pergunta: por que não mandamos todos os quatro sófons construídos para a Terra?

— O entrelaçamento quântico funciona à distância. Mesmo se quatro sófons fossem dispostos em cantos opostos do universo, ainda conseguiram sentir uns aos outros de maneira instantânea, e a formação quântica entre eles continuaria existindo. Se mantivermos Sófon Três e Sófon Quatro aqui, poderemos receber no mesmo instante as informações enviadas por Sófon Um e Sófon Dois e, assim, monitorar a Terra em tempo real. Além do mais, a formação de sófons permite uma comunicação instantânea entre Trissolaris e as forças alienadas da civilização terrestre.



Sem que ninguém se desse conta, o sol que havia acabado de nascer sumiu no horizonte. Era o começo de mais uma Era Caótica em Trissolaris.





Enquanto Ye Wenjie lia as mensagens de Trissolaris, o Centro de Comando em Batalha conduzia outra importante reunião para analisar mais a fundo os dados capturados.

— Camaradas — disse o general Chang antes do encontro —, por favor, saibam que nossa reunião provavelmente está sendo acompanhada pelos sófons. A partir de agora, não haverá mais nenhum segredo.



O ambiente não mudou quando ele falou isso. As sombras das árvores dançavam para além das cortinas abertas, mas, aos olhos dos presentes, o mundo já não era mais o mesmo. Todos sentiam a força de olhos onipresentes, e era impossível se esconder deles. Essa sensação os perseguiria para sempre, e seus descendentes também estariam sujeitos a ela. Os seres humanos levariam muitos e muitos anos para se acostumar à situação.

Três segundos depois de o general Chang falar, Trissolaris se comunicou com a humanidade pela primeira vez fora da OTT, e todo contato com os adventistas foi encerrado definitivamente em seguida. Pelo resto da vida das pessoas ali presentes, Trissolaris nunca mais enviaria nenhuma mensagem.



Todos no Centro de Comando em Batalha viram a mensagem nos próprios olhos, tal como a contagem regressiva de Wang Miao. A mensagem piscou por apenas dois segundos e desapareceu, mas todo mundo entendeu. Era uma única frase:



Vocês são insetos!

Existe um trocadilho entre a palavra chinesa para próton, zhizi (MN), e a palavra para sófon, zhizi (LN).







34. INSETOS





Quando Shi Qiang passou pela porta da casa de Ding Yi, Wang Miao e Ding Yi já estavam muito bêbados.



Os dois ficaram felizes de ver Shi Qiang. Wang se levantou e abraçou o recém-chegado.



— Ah, Da Shi, policial Shi…



Ding, que nem conseguia ficar de pé, pegou um copo e colocou na mesa de sinuca.



— Seu raciocínio criativo não ajudou — disse ele, servindo um pouco de bebida. — Mesmo se não tivéssemos olhado aquelas mensagens, o resultado daqui a quatrocentos anos continuaria sendo o mesmo.



Da Shi se sentou na frente da mesa de sinuca e observou os dois com um olhar matreiro.



— É isso mesmo? Já acabou tudo?



— Claro. Acabou — disse Ding.



— Vocês não podem usar os aceleradores e não conseguem estudar a estrutura da matéria. Isso significa que está tudo acabado? — perguntou Da Shi.

— Hum… o que você acha?



— A tecnologia ainda está avançando. O acadêmico Wang e sua equipe acabaram de criar o nanomaterial…

— Imagine um reino ancestral, por favor. A tecnologia desse reino está avançando. As pessoas podem inventar espadas, facas, lanças melhores. Talvez até consigam inventar bestas de repetição que disparam várias setas como se fossem metralhadoras…

Da Shi indicou com a cabeça que estava acompanhando.



— Mas se essas mesmas pessoas não sabem que a matéria é composta de moléculas e átomos, nunca vão criar mísseis e satélites. Estão limitadas por seu próprio nível científico.

Ding deu um tapinha no ombro de Da Shi.



— Eu sempre soube que nosso policial Shi era esperto. Só que você…



— O estudo da estrutura profunda da matéria é a base para todas as outras ciências. Se não houver nenhum progresso nessa área, todo o resto, como você diria, não passa de palhaçada.

Ding apontou para Wang.



— O acadêmico Wang vai passar o resto da vida ocupado e continuará aprimorando nossas espadas, facas e lanças. Que porra que eu vou fazer? Alguém pode me dizer? — Ele jogou uma garrafa vazia na mesa e pegou uma bola de sinuca para arrebentá-la.



— Isso é bom! — Wang levantou o copo. — Vamos poder viver o resto da vida de um jeito





ou de outro. Pelo menos toda decadência e depravação será justificável! Nós somos insetos! Insetos que estão prestes a entrar em extinção! Haha…



— Exatamente! — Ding também levantou o copo. — Eles nos desprezam tanto que nem perdem tempo disfarçando o plano, esfregam logo na nossa cara. Sem falar que contaram tudo para os adventistas. É que nem a gente que não precisa esconder a lata de inseticida dos vermezinhos. Vamos ferrar os insetos! Nunca imaginei que o fim do mundo seria tão bom. Longa vida aos insetos! Longa vida aos sófons! Longa vida ao fim do mundo!

Da Shi balançou a cabeça e virou o copo. Depois balançou a cabeça de novo.



— Bando de frouxos.



— O que você quer? — Ding encarou Da Shi com um olhar embriagado. — Você acha que consegue nos animar?

Da Shi se levantou.



— Vamos.



— Aonde?



— Achar um negócio para animar vocês.



— Que se dane, meu amigo. Senta aí de novo. Beba.



Da Shi pegou os dois pelos braços, obrigando-os a se levantar.



— Vamos. Tragam a bebida se precisarem.



Na rua, os três entraram no carro de Da Shi. Quando o motor foi ligado, Wang perguntou com a língua pastosa para onde estavam indo.



— Minha cidade natal — respondeu Da Shi. — Não é muito longe.



O carro saiu da cidade e seguiu para o oeste pela rodovia Beijing-Shijiazhuang. Assim que eles entraram na província de Hebei, Da Shi saiu da rodovia, parou o carro e arrastou os dois passageiros para fora.



Quando Ding e Wang saíram do carro, tiveram que apertar os olhos por causa do sol claro da tarde. Diante deles se estendiam os trigais da planície do norte da China.



— Por que você nos trouxe aqui? — perguntou Wang.

— Para olhar os insetos. — Da Shi acendeu um dos charutos que o coronel Stanton lhe dera e apontou com ele para os trigais.

Wang e Ding se deram conta de que a lavoura estava coberta por uma camada de gafanhotos. Todos os colmos de trigo tinham alguns em cima. No chão, vários outros se agitavam, como um líquido espesso.



— Tem uma praga de gafanhotos aqui? — Wang afastou alguns gafanhotos de um trecho pequeno do trigal e se sentou.

— Eles começaram a aparecer há dez anos, como as tempestades de areia. Mas este ano está sendo o pior.

— E daí? Nada mais importa, Da Shi — disse Ding, ainda com voz de bêbado.



— Eu só queria perguntar uma coisa para vocês: o abismo tecnológico entre humanos e trissolarianos é maior do que o que existe entre os gafanhotos e os humanos?

A pergunta caiu nos dois cientistas como um balde de água fria. Quando eles olharam para os amontoados de gafanhotos diante de si, assumiram uma expressão solene. Os dois entenderam o raciocínio de Shi Qiang.


Olhem só para eles, os insetos. Os seres humanos já usaram tudo o que podiam para exterminá-los: aplicaram todos os tipos de veneno, fizeram pulverização aérea, introduziram e cultivaram predadores naturais, procuraram e destruíram os ovos, usaram modificação genética para esterilizá-los, queimaram com fogo, afogaram com água. Toda família tem inseticida em casa, toda escrivaninha tem um mata-moscas na gaveta… Essa longa guerra vem sendo travada por toda a história da civilização humana, mas ainda não se sabe quem vencerá. Os insetos não foram eliminados. Vivem cheios de orgulho entre o céu e a terra, e a população não ficou menor do que era antes do surgimento dos seres humanos.

Os trissolarianos achavam que os humanos eram meros insetos, mas se esqueceram de uma coisa: os insetos nunca foram realmente derrotados.

Uma pequena nuvem escura encobriu o sol e fez uma sombra se deslocar pelo chão. Não era uma nuvem comum, e sim uma infestação de gafanhotos que havia acabado de chegar. Quando a nuvem pousou na lavoura, os três homens se levantaram no meio de uma chuva viva e sentiram a dignidade da vida na Terra. Ding Yi e Wang Miao viraram no chão o vinho das duas garrafas que tinham levado, um brinde aos insetos.

— Da Shi, obrigado. — Wang estendeu a mão.

— Também agradeço. — Ding cumprimentou a outra mão de Da Shi.

— Vamos voltar — disse Wang. — Temos muito a fazer.







35. AS RUÍNAS




Ninguém acreditou que Ye Wenjie fosse capaz de escalar o pico do Radar por conta própria, mas ela foi mesmo assim. Ye não aceitou nenhuma ajuda no caminho e só parou para descansar algumas vezes nas guaritas abandonadas. Consumiu sem dó a própria vitalidade, vitalidade que não poderia ser renovada.



Quando descobriu a verdade sobre a civilização trissolariana, Ye se entregou ao silêncio. Ela falava raramente, mas fez um pedido: queria visitar as ruínas da Base Costa Vermelha.

Quando o grupo de visitantes subiu ao pico do Radar, o cume estava bem acima das nuvens. Depois de um dia inteiro de caminhada em meio a uma neblina densa, ver o sol forte no oeste e o céu azul limpo foi como abrir as cortinas de um mundo novo. No cume da montanha, as nuvens eram um mar branco e prateado, e as ondas pareciam abstrações da cordilheira Grande Khingan mais abaixo.



As ruínas que os visitantes haviam imaginado não existiam. A base fora totalmente desmontada, e restava apenas um matagal no cume. As fundações e as estradas foram enterradas, e o lugar todo parecia desolado. Era como se a Costa Vermelha nunca tivesse existido.

Mas Ye logo descobriu algo. Ela foi até uma pedra alta e afastou as trepadeiras que a cobriam, revelando uma superfície enferrujada cheia de manchas. Só então os visitantes entenderam que a pedra, na verdade, era uma base grande de metal.



— Esta era a base da antena — disse Ye. O primeiro grito da Terra que alcançou os ouvidos de um mundo extraterrestre tinha sido enviado da antena que existira ali na direção do sol, que então o amplificou e transmitiu para o universo inteiro.



Eles encontraram uma placa de pedra pequena do lado da base, quase completamente perdida na grama.



BASE COSTA VERMELHA (1968-1987)



ACADEMIA CHINESA DE CIÊNCIAS 1989.03.21



A placa era minúscula. Não parecia muito um memorial, e sim uma tentativa de esquecimento. Ye foi até a beira do penhasco. Certa vez, com as próprias mãos, ela havia tirado ali a vida de dois soldados. Ela não observava o mar de nuvens, como os outros, mas voltou o olhar para uma direção. Abaixo das nuvens havia um vilarejo chamado Qijiatun.



O coração de Ye batia com dificuldade, como a corda de um instrumento musical que estivesse prestes a se partir. Seus olhos começaram a ficar encobertos com uma neblina negra. Ela usou as últimas forças para continuar de pé. Antes que a escuridão levasse tudo embora, queria ver o pôr do sol da Base Costa Vermelha pela última vez.



No horizonte ocidental, o sol descia lentamente no mar de nuvens e parecia derreter. O astro rubro se dissolveu nas nuvens e se espalhou pelo céu, iluminando uma grande porção do firmamento com um magnífico tom vermelho de sangue.



— Meu pôr do sol — sussurrou Ye. — E o ocaso da humanidade.

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