JOHN RUSKIN: TEORIAS DA PRESERVAÇÃO E SUAS INFLUÊNCIAS NA PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO BRASILEIRO NO INÍCIO DO SÉCULO XX

FLÁVIA MONTEIRO

Ruskin e as Teorias da Preservação dos Monumentos.


John Ruskin desenvolveu as principais teorias de preservação e restauração de mo-numentos no livro As Sete Lâmpadas da Arquitetura, publicado em 1849 em uma Inglaterra marcada pelo período do desenvolvimento industrial. O livro é divido em sete capítulos, que correspondem ao que o autor chama de as sete lâmpadas, ou “leis” que a arquitetura deveria seguir, são elas: Sacrifício, Verdade, Poder, Beleza, Vida, Memória e Obediência.


Em seu livro, o teórico constrói os capítulos em caráter independente, porém ne-nhum como a Lâmpada da Memória. Este pode ser estudado separadamente, como uma obra autônoma e de muita validade. O teórico estudou nesse capítulo as teo-rias de preservação e conservação do patrimônio histórico, apresentou as ideias do movimento da antirrestauração e do pitoresco na arquitetura.


É na longa duração, com a passagem do tempo, que a arquitetura vai se  impregnando da vida e dos valores humanos; daí a importância de construir edifícios duráveis, e de preservar aqueles que chegaram até nós. (RUSKIN, 2008)


Ruskin foi um dos primeiro teóricos do século XIX a reconhecer a importância das residências na construção do patrimônio de uma cidade. Segundo Ruskin (2008), pode-se considerar um mau presságio para um povo quando as suas casas são construídas para durar apenas uma geração. Existe uma santidade na casa do homem, um lugar de uma história da família, onde eles compartilharam suas honras, suas alegrias e seu sofrimento. Afirmando seu puritanismo, Ruskin fala que um homem de bem temeria a destruição de seu domicílio, pois para ele seria a destruição do monumento a sua homenagem, assim como um filho, descente e honrado, temeria fazer isso com a casa de seu pai. “Creio que, se os homens vivessem de fato como homens, suas casas seriam templos – templos que nós nunca nos atreveríamos a violar, e que nos fariam sagrados se nos fosse permitido morar neles.” (RUSKIN, 2008)


Segundo Ruskin (2008), a destruição do patrimônio, principalmente os domicílios, não é um mal insignificante, sem consequências. Não é uma questão de mero aspecto visual que as construções domiciliares sejam duráveis e perfeitas, as moradias devem durar por um período suficiente para que seus descendentes possam perceber como viveram, quem foram e onde ascenderam os seus antepassados. John Ruskin faz ainda considerações sobre a preservação de edifícios públicos, que para ele deve ser ainda mais precisa. Quanto aos ornamentos, Ruskin afirma que é necessário que eles tenham um significado, principalmente nas edificações cívicas.


É preferível a obra mais rude que conta uma história ou registra um fato, do que a mais rica sem um significado. Não se deveria colocar um único ornamento em grandes edifícios cívicos, sem alguma intenção intelectual. (RUSKIN, 2008)


Segundo Ruskin (2008), a arquitetura é centralizadora e protetora dessa influência

sagrada. “Nós podemos viver sem ela, e orar sem ela, mas não podemos rememorar sem ela.” (RUSKIN, 2008) A memória é um dos pontos principais do pensamento do autor que ainda afirma que há apenas dois vencedores do esquecimento do mundo, a poesia e a arquitetura, sendo que a última é mais poderosa na sua realidade, pois dá a oportunidade de ter ao alcance o que os homens daquela época pensaram, sentiram, manusearam e contemplaram.

Em mais um aforismo, Ruskin (2008) afirma que a arquitetura deve ser feita histórica e preservada como tal. Os principais deveres quanto à arquitetura para o autor são: primeiro, tornar a arquitetura atual, histórica; e o segundo, preservar, como a mais preciosa de todas as heranças, aquela das épocas passadas.

Ao falar da preservação dos monumentos, Ruskin (2008) afirma que eles devem ser conservados, mas se apresenta contra a restauração. Para ele a restauração é a pior forma de destruição. Sua teoria deu origem ao movimento Anti-Scrape ou Anti Restauração. 


Segundo Ruskin, ninguém, nem o público, nem os profissionais encarregados dos monumentos sabem o verdadeiro significado da palavra restauração. Para ele significa total destruição, da qual não se salva nenhum vestígio, uma destruição acompanhada pela falsidade. Ruskin se apresenta a favor da conservação, pois afirma que se os monumentos forem conservados sempre, não precisarão ser restaurados.


Cuide bem de seus monumentos, e não precisará restaurá-los. Algumas chapas de chumbo colocadas a tempo num telhado, algumas folhas secas e gravetos removidos a tempo de uma calha, salvarão tanto o telhado como as paredes da ruína. Zele por um edifício antigo com ansioso desvelo; proteja-o o melhor possível, e a qualquer custo, de todas as ameaças de dilapidação. Conte as suas pedras como se fossem as joias de uma coroa; coloque sentinelas em volta dele como nos portões de uma cidade sitiada; amarre-o com tirantes de ferro onde ele ceder; apoie-o com escoras de madeira onde ele desabafar; não se importe com a má aparência dos reforços: é melhor uma muleta do que um membro perdido; e faça-o com ternura, e com reverência, e continuamente, muitas gerações ainda nascerão e desaparecerão sob sua sombra. Seu dia fatal por fim chegará; mas que chegue declarada e abertamente, e que nenhum substituto desonroso e falso prive o  monumento das honras fúnebres da memória. (RUSKIN, 2008)


Nesse trecho Ruskin exalta que algumas formas de conservação são capazes de prolongar a vida de uma edificação, porém expressa que, inevitavelmente, um dia ela se tornará ruínas e desaparecerá. O importante é que a edificação não seja descaracterizada em restaurações que manchariam a sua história e que sua honra permaneça intacta.


Ruskin afirma que é a idade de uma edificação e a sua história que mais atribui dignidade ao monumento. Quanto mais antiga é uma edificação mais valor ela apresenta para a sociedade. Para o autor, a maior glória de um edifício está no testemunho duradouro diante dos homens. “É naquela mancha dourada do tempo que devemos procurar a verdadeira luz, a cor e o valor da arquitetura.” (RUSKIN, 2008).


Ruskin afirma que a beleza referente às marcas do tempo na arquitetura é um dos responsáveis pela atribuição do conceito de pitoresco à edificação. É como uma sublimidade parasitária, um intermédio entre o sublime e o belo. Toda a sublimidade, assim como toda a beleza, é pitoresca, isto é, própria para se tornar o tema de uma pintura.


Assim, duas idéias são essenciais para o pitoresco – a primeira, aquela da sublimidade (pois a beleza pura não é nada pitoresca, e só assume tal caráter na medida em que o elemento sublime se mistura com ela); a segunda, a posição subordinada ou parasitária de tal sublimidade. Portanto, é claro que quaisquer características de linha, ou sombra, ou expressão, que produzam sublimidade, produzirão também o pitoresco. (RUSKIN, 2008)


Para o autor, em arquitetura o pitoresco é procurado na ruína e consiste na deterioração, visto na sublimidade das fendas, ou fraturas, ou manchas, ou vegetação. Ruskin expressa que quanto mais antiga é uma edificação ou um monumento, maior beleza e sublimidade pelas marcas do tempo eles apresentarão.

Ruskin (2008) ainda afirma que não existe a opção por preservar ou não os edifícios do passado, que não é uma questão de conveniência ou simpatia. Para ele os ho-mens de hoje não tem direito de tocá-los, pois não os pertence, os edifícios pertencem a quem os construiu e a todas as gerações da humanidade.

A memória pode ser verdadeiramente considerada como a sexta lâmpada da arquitetura; pois, é ao se tornarem memorais ou monumentais que os edifícios civis e domésticos atingem uma perfeição verdadeira, e isso em parte por eles serem, com tal intento, construídos de uma maneira mais sólida, e em parte por suas decorações serem consequentemente inspiradas por um significado histórico ou metafórico. (RUSKIN, 2008)


As influências de John Ruskin na Preservação do Patrimônio Brasileiro no início do Século XX


As teorias de Ruskin tiveram muita influência em toda a Europa e nos Estados Unidos, desde o final do século XIX, porém no Brasil a sua recepção foi limitada. (LIRA, 2006). Poucos estudiosos brasileiros se interessavam, isso ocorreu talvez por falta de publicações em português ou pelo fato de que a industrialização no Brasil era quase inexistente. O interesse sobre John Ruskin e suas teorias foram aparecer somente no século XX.


O livro As Sete Lâmpadas da Arquitetura teve ressonância no Brasil nas primeiras décadas do Século XX para os adeptos do Neocolonial. Segundo Pinheiro (2008b), os conceitos de Ruskin sobre a importância do patrimônio já estão presentes nos relatórios sobre os reparos nos Fortes de Bertioga, feito por Euclides da Cunha, em 1904, para o Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo. Nesse relato Euclides da Cunha afirma que:

Trata-se de conservar duas grandes relíquias, que compensam a falta absoluta de qualquer importância estreitamente utilitária, com o incalculável valor histórico que lhes advém das nossas mais remotas tradições. Compreende-se, porém, que tais reparos tendam apenas a sustar a marcha das ruínas. Quaisquer melhoramentos ou retoques, que se executem, serão contraproducentes, desde que o principal encanto dos dois notáveis monumentos esteja, como de fato está, na sua mesma vetustez, no aspecto característico que lhe imprimiu o curso das idades. (CUNHA, 1904 apud PINHEIRO, 2008b)


É possível perceber nesse trecho do Relato sobre os Reparos no Forte de Bertioga que as teorias da Ruskin estão presentes, principalmente na valorização da edificação pela sua idade e pelas tendências da antirrestauração, que condena retoques que eliminem totalmente o sinal do tempo no monumento.


Isso se estendeu para a arquitetura domiciliar, que segundo Ruskin o ideal de arquitetura doméstica não é a casa com o aspecto novo, intocável e reluzente, a verdadeira casa é aquela que harmoniza com o ambiente onde está situada, aquela que atrai as pessoas e as convida a entrar. Lucio Costa completou o pensamento de Ruskin afirmando que as moradias deveriam expressar o caráter, a ocupação e a história de cada morador. (PINHEIRO,2008b)


Ruskin é um dos primeiros teóricos a constatar a importância da preservação das residências, como o monumento mais próximo do homem, um “monumento a sua vida e sua família”. O teórico considera a residência como a arquitetura que dá origem a todas as outras, considera “a pequena habitação, tanto quanto a grande, e que investe com a dignidade da humanidade satisfeita a estreiteza das circunstâncias mundanas.” (RUSKIN, 2008). 


Esse pensamento se fortaleceu muito no Brasil onde as habitações coloniais receberam grande atenção, sendo preservados os grandes centros urbanos, como Ouro Preto, Diamantina, Tiradentes, entre outras cidades.


“[...] O monumento é uma exceção, a casa é a nota normal da vida cotidiana do cidadão, é como uma lápide epigráfica da sua ascendência e da sua história.” (SEVERO, 1916 apud PINHEIRO, 2008).


Segundo Pinheiro (2008b), os grandes monumentos podem ser construídos em estilos universais, apenas pela beleza, e não modificam a feição da cidade. Segundo Ricardo Severo (1916), seguidor do estilo neocolonial, o caráter da cidade não é dado pelos seus monumentos, colocados em pontos dominantes. É possível perceber que a paisagem urbana de uma cidade é determinada pelas residências, que são a maioria das edificações presentes.

Pinheiro (2008b) comenta ainda que Ruskin influencia os escritos de José Mariano Filho, um dos mentores intelectuais do Neocolonial no Rio de Janeiro, onde o teórico brasileiro valoriza os aspectos locais e nacionais na arquitetura, valorizando o patrimônio e definindo a arquitetura brasileira.


Segundo Lira (2006), teorias de alguns arquitetos brasileiros compartilhavam das mesmas ideias de Ruskin. Um deles seria Lucio Costa, que valorizava o artesanato e os processos de fazer manual, que são impregnadas de contribuição pessoal. Dessa forma, o fazer manual estabelece o vínculo entre o artista maior e os artesãos. Esses foram subitamente substituídos pela produção industrializada. “Estabeleceu-se, desse modo, o divórcio entre a artista e o povo: enquanto o povo artesão era parte consciente na elaboração e evolução do estilo da época, o povo proletário perdeu o contato com a arte.” (COSTA, 1952 apud Lira, 2011).


Segundo Pinheiro (2008b), o campo da preservação do patrimônio foi pouco explorado nas primeiras décadas do século XX, apesar dos estudos dos teóricos brasileiros sobre Ruskin e suas teorias. O grande salto para a preservação da arquitetura brasileira começa na década de 1930, com a criação do SPHAN, atual IPHAN, que foi o primeiro órgão brasileiro a proteger os patrimônios nacionais.

Como é fria toda a história, como é sem vida toda fantasia, comparada àquilo que a nação viva escreve, e o mármore incorruptível ostenta! - quantas páginas de registros duvidosos não poderíamos nós dispensar, em troca de algumas pedras empilhadas umas sobre as outras! (RUSKIN, 1956)


Segundo Lira (2006), o nome de Ruskin está continuamente associado à tendência mais conservadora. Seu pensamento puritano levou-o a notar a degeneração da arte: “Segundo Artigas, Ruskin notara a degenerescência da arte de seu tempo (cerca de 1850). Acreditava que a culpa principal cabia à máquina, ao trabalho industrial, ao abandono do artesanato.” (LIRA, 2006)


Ruskin tem sido muito estudado desde suas publicações no século XIX, Lira (2006) afirma que apesar das recusas e revisões das ideias do teórico, ainda pode-se enquadrá-lo muito bem no campo do patrimônio. Ruskin permanece como uma grande referência como teórico da arte, da arquitetura e da conservação.


Conclusão

Com os estudos realizados foi possível constatar que John Ruskin foi um dos mais importantes teóricos da Inglaterra e sua teoria e obra foram difundidas no século XIX e até hoje permanecem pertinentes a discussões sobre arte e arquitetura contemporânea. Por possuir uma educação severa e ter ideologias puritanas, Ruskin incluiu em seus escritos muitas influências religiosas e morais, onde foi possível perceber que a presença dessas máximas morais era, para ele, o grande solucionador dos problemas da Era da Industrialização. O teórico era profundamente contrário à industrialização, culpando-a pelas mazelas da época e pela destruição dos monumentos e da paisagem da Inglaterra no século XIX.


O livro As Sete Lâmpadas da Arquitetura, foi onde Ruskin mais expressou o seu moralismo e puritanismo. Quando escreveu as teorias das sete leis da arquitetura, que chamou de lâmpadas, pois iluminariam o pensamento dos arquitetos; o teórico afirmou que nenhuma delas deveria ser quebrada, já que eram perfeitas. Poderiam até ser aperfeiçoadas, mas jamais essas regras deveriam ser quebradas ou substituídas por outras. Porém, como de esperado, muitas das teorias de Ruskin foram sendo substituídas por outras mais atuais aos contextos pelos quais os arquitetos passaram. Atualmente é difícil compreender as ideologias de Ruskin, pois o mundo, a arte e a arquitetura já romperam, em quase totalidade, a sua dependência com a religião. Para compreendermos o pensamento dele é preciso entender que no século XIX a religião era muito mais influente nas artes e nas ciências, influenciando muitos teóricos.


John Ruskin foi muito influente em toda a Europa e Estados Unidos no século XIX, mas foi apenas no século XX que as suas ideias chegaram ao Brasil. Isso ocorreu porque durante o século XIX o Brasil ainda era agrário e não sofria as influências da industrialização que o teórico tanto escrevia em seus livros. Já no século XX, os seus escritos influenciaram muitos teóricos brasileiros. Com suas teorias, Ruskin se tornou uma grande influência para a preservação do patrimônio, principalmente na revisão do que havia de ser preservado, dando ênfase aos edifícios domiciliares, como ele mesmo os chamava de “templo do homem”.


Apesar da preservação do patrimônio brasileiro ter começado muito tardiamente, graças às essas teorias, reafirmadas posteriormente por teóricos como Lúcio Costa, sítios urbanos foram preservados por completo, desde monumentos até a casa pequena do trabalhador.


John Ruskin, mesmo apresentando teorias puritanas referentes à época em que viveu, ainda se apresenta atual, principalmente em relação as suas teorias da conservação e preservação dos monumentos. Dessa forma, seus escritos se tornaram extremamente relevantes para a discussão de arquitetura e patrimônio arquitetônico atual.


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